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City
Domingos
Rego
Dar a ver a cidade é
dar a ver o que a rotina e a pressa encobrem, é dar a ver o espaço
de todos os encontros e desencontros, de todas as fugas, das geradas pelas
grandes avenidas, mas também as fugas literais daqueles que tentam
escapar à sedução e ao stress da cidade. Há um
longo historial da representação da cidade que se confunde com
o próprio surgimento da arte moderna: é a cidade como espelho
da sociedade que gosta de se rever nas telas de Caillebotte, elevando à
categoria de temas representáveis os novos boulevards.
O desenvolvimento tecnológico verificado no século XIX teve
consequências em todas as facetas do humano e projectou-se na renovação
do corpo da cidade, que então se constituía, como pólo
de confluência de culturas, oportunidades e de grandes massas de população.
As novas soluções construtivas que usam estruturas de ferro
possibilitam o surgimento de novas tipologias de edifícios, como resposta
às aspirações e necessidades dessa população,
em particular da burguesia emergente.
No quadro das novidades urbanísticas e arquitectónicas, são
de destacar as passagens cobertas ou galerias, construídas com estruturas
em ferro e envidraçadas, surgidas em Paris, cerca de 1800. São
espaços ambíguos, entre a rua e o espaço fechado e correspondem
à formalização arquitectónica dos desejos da burguesia
emergente. Nesse sentido, são de considerar os, já citados,
boulevards de Haussman, largas avenidas que rasgam a cidade de Paris
e que lhe redefinem o perfil e que, conjuntamente com novas praças
e cruzamentos, sugerem a circulação contínua, pontuada
por edifícios investidos de valor simbólico no plano político,
religioso ou histórico. Será neste enquadramento que emerge
a noção de periferia da cidade, fruto da sua expansão
e do crescimento populacional.
A periferia como limite da cidade, mas também como experiência
limite e radical encontra na fase inicial da obra de Seurat uma eloquente
tradução. São deste período inicial os trabalhos
que produz na chamada “Zona”, um território nos subúrbios
de Paris onde os deserdados da sociedade industrial recolhiam lixo. Muitos
destes desenhos eram feitos à noite, o que salientava o lado menos
sedutor da sociedade industrial moderna. Para além do que possamos
deduzir das suas preocupações temáticas, ao tratar esta
espécie de “terra de ninguém”, importa referir o
processo de trabalho adoptado por Seurat nestas obras. A visão nocturna
possibilita o surgimento de vultos, figuras e objectos indistintos que o jovem
Seurat tratava contrastando ao máximo as zonas iluminadas e sombrias
nos seus desenhos. Fá-lo de um modo pouco usual, sugerindo a luz a
partir da folha branca de papel e riscando a negro profundo as zonas menos
iluminadas. Este procedimento encontra analogias com o trabalho de Millet
(1814-1875), não só nos processos técnicos, como nas
preocupações sociais que aí são reveladas.
A noite e a iluminação artificial da cidade representarão
também uma opção clara do fotógrafo Brassaï
que, nas representações de Paris que nos deixou, usou essa luz
particular para convocar o mistério e sublinhar o aspecto onírico
da cidade.
Num livro com o título Não-Lugares, Introdução
a uma Antropologia da Sobremodernidade, publicado em 1992, Marc Augé
produz uma análise lúcida sobre o espaço nas sociedades
contemporâneas. Não um espaço abstracto, especulativo,
mas o espaço concreto das cidades onde habitamos e que, numa sociedade
globalizada como a nossa, tem características comuns em muitas latitudes
do planeta. O livro começa por identificar alguns aspectos, caracterizadores
da sobremodernidade nas grandes metrópoles, que passam pela aceleração
do tempo, resultado, na perspectiva do autor da super abundância de
acontecimentos, passando depois para uma identificação das condições
que promovem um nova percepção do espaço. A este respeito,
considera a existência de transportes mais rápidos, que produzem
a impressão de que o espaço percorrido é mais pequeno,
mas também a existência de comunicações que tornam
os contactos instantâneos. Por fim, o autor põe em relevo o indivíduo
e a necessidade que este tem de interpretar o seu lugar no mundo, condicionado
como está por uma sociedade massificada que caracteriza a grande urbe.
A super abundância de acontecimentos, a super abundância espacial
e a individualização das referências serão os parâmetros
de onde parte o autor para avançar com as suas reflexões antropológicas.
Antes de mais, o próprio conceito de lugar é equacionado no
contexto do modernismo baudelairiano, que inclui lugares e ritmos antigos,
embora colocados num plano secundário: “Se um lugar pode definir-se
como identitário, relacional e histórico, um espaço que
não possa definir-se nem como identitário, nem como relacional,
nem como histórico, definirá um não-lugar. A hipótese
aqui defendida é a de que a sobremodernidade produz não-lugares,
ou seja, espaços que em si mesmos não constituem lugares antropológicos
e que, ao contrário da modernidade baudelairiana, não integram
os lugares antigos: inventariados, classificados e promovidos a ‘lugares
de memória’, estes ocupam naquela um lugar circunscrito e específico.”1
Nesta obra o autor defende que a sobremodernidade produz não lugares
antropológicos, destituídos das memórias da comunidade,
sendo exemplos destes espaços construções dedicadas à
circulação rápida das pessoas, como vias-rápidas,
viadutos, aeroportos, mas também os próprios meios de transporte,
carros, comboios ou aviões. A produção destes não-lugares
não se restringe à circulação de pessoas e mercadorias,
inclui também os espaços uniformizados das grandes cadeias de
hotéis, as grandes superfícies comerciais, todos os espaços
onde as pessoas se encontram em trânsito sem estabelecerem vínculos
de relação com os outros.
O isolamento nas sociedades contemporâneas será também
motivo de reflexão, por parte de Guy Debord, que em A Sociedade
do Espectáculo afirma: “O sistema económico baseado
no isolamento é uma produção circular de isolamento.
O isolamento gera a técnica e, em consequência, o processo técnico
isola. Desde o automóvel até à televisão, todos
os bens seleccionados pelo sistema espectacular constituem, em si mesmos,
as suas armas para o reforço constante das condições
de isolamento das ‘multidões solitárias’. O espectáculo
reproduz sempre os seus pressupostos, cada vez de um modo mais concreto.”2
A grande cidade cresceu impulsionada pelo desejo de criar riqueza e progresso,
encheu-se de pessoas que se cruzam nos transportes colectivos, imóveis
e silenciosas, participando num ritual perverso que tudo padroniza e onde
o sujeito tudo consome, até a sua própria individualidade.
Quando Edward Hopper (1882-1967) realizou, em 1921, a gravura Night Shadows,
o homem solitário que aí representou, caminhando à noite,
na rua deserta da cidade, encarna, num certo sentido, a representação
de todos os homens solitários das grandes cidades do mundo. O dramatismo
da cena e a tensão psicológica inerentes são reforçados
pelo jogo de sombras na rua e nas fachadas dos edifícios.
Mas a cidade é um somatório de solidões, uma multidão
solitária, uma solidão pública, como já assinalava
Daumier, na obra Un Wagon de Troisièmme Classe, de 1863-1865.
Nos trabalhos aqui apresentados a opção pela linguagem do desenho,
pela sua simplicidade, evidencia a valorização de um olhar sem
subterfúgios estilísticos, mostrando uma visão fragmentária
da cidade na primeira sala, propondo uma deslocação circular
e contínua na segunda e possibilitando a expansão até
aos limites na terceira.
Azeitão, 2007
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