home
m
 
city

City

Lúcia Marques
www.artecapital.net
Fevereiro de 2007

Na primeira exposição inteiramente dedicada à prática continuada do desenho, Domingos Rego (n. 1965, Castelo-Branco) desmultiplica a Cidade contemporânea em visões subjectivas dos seus espaços globais, permitindo ainda perceber a crescente influência que a fotografia tem desempenhado nos seus trabalhos e pesquisas pictóricas dos últimos anos. Desta vez o artista particulariza a forma como o desenho se tem prestado de modo secular à inventariação e apropriação de diferentes contextos urbanos com evidentes semelhanças entre si. Toma como ponto de partida a observação directa da realidade e a sua representação fotográfica, interessando-lhe captar em simultâneo a voracidade da experiência visual das grandes cidades e a sedimentação das imagens culturais que sobre elas se foram constituindo desde a modernidade.

Domingos Rego tem-se revelado um pintor apaixonado pela história da arte moderna e contemporânea e a sua obra revisita frequentemente alguns dos grandes mestres que, no seu próprio tempo, libertaram a pintura das premissas mais convencionais. Quando em 1999 prestou homenagem explícita ao pioneiro do neo-impressionismo através da exposição “Banhos de Luz – A Seurat”, Rego apresentou o início de um ciclo de trabalhos que dissecavam a técnica do divisionismo para explorar o papel do olhar na composição das imagens. O exercício visual que então se propunha (de abstracção/reconstituição) resultava já de uma primeira reflexão em torno do tema do Ócio enquanto temporalidade activa e necessária à fruição estética. Esta tese, que entretanto aprofundou no contexto do Mestrado realizado em Pintura sob o título “O Ócio como deambulação do olhar, ou o Ócio na produção artística e na fruição estética contemporâneas” (defendida em 2006 na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde também lecciona) esclarece alguns aspectos da “City” (2006) que agora se dá a ver.

A montagem da exposição estabelece desde logo um percurso físico com correspondência na descoberta e fruição visual da cidade: partimos de impressões dispersas e fragmentárias de cenas urbanas com grande concentração de paisagem construída, e em cenários por vezes facilmente reconhecíveis, como os edifícios nova-iorquinos. Os desenhos a grafite líquida têm aqui diferentes tamanhos, intensidades gráficas e aproximações à realidade, revelando claras influências das soluções que a fotografia e o cinema encontraram para retratar a vida citadina.

Depois dos grandes planos e vistas em “plongé” que apresentam a Cidade, há toda uma prospecção dos seus percursos e interstícios. A condição de intervalo do próprio corredor é assim eficazmente usada e reforça a metáfora da interpretação do real em deslocação. Percorremos agora um circuito de viagens nos limites da urbanidade: a Cidade define-se não apenas por presenças mas por exclusões e está em constante movimento. Ela também é o que viaja connosco.

O percurso termina numa nova sala com duas hipóteses no horizonte: de um lado uma visão nocturna que celebra a beleza misteriosa e solitária da Cidade. É uma imagem algo familiar, que parece evocar num único enquadramento duas outras referências tutelares para Domingos Rego: Brassai (e sua deambulação noctívaga e romântica por Paris) e Edward Hopper (pelo realismo dramático com que retratou a solidão nas cidades americanas). Do outro lado, uma cortina negra apenas deixa vislumbrar o movimento de figuras indistintas que tomam direcções opostas. É uma projecção no limiar da visibilidade. Ambas constituem imagens de uma Cidade que, tal como o desenho, se desdobra a partir de dentro para que nós a possamos redescobrir.

crítica
 
Voltar ao topo
o