|
|
|
|
|
|
|
Tempo Real
Domingos Rego
O cliente: Deus fez o mundo em seis dias, e você, você não
foi capaz de me fazer umas calças em seis meses.
O alfaiate: Mas, meu caro senhor, olhe bem para o mundo,
e olhe para as suas calças.
Samuel Beckett 1
As pinturas expostas evocam e problematizam o tempo do fazer artístico. Numa época dominada pela aceleração das vivências quotidianas, a pintura apresenta-se como um processo que dilata e aprofunda as experiências do real. Nestes trabalhos que exploram possibilidades combinatórias entre os vários painéis, a memória da escultura clássica e o tempo cíclico da natureza são articulados com a lenta construção pictórica.
O tempo, o espaço, a matéria são elementos constitutivos da pintura, mas a forma como se articulam em cada trabalho determina, em grande medida, o modo como se estabelece a intermediação entre o gesto do pintor, as suas motivações mais profundas, e a visão do espectador. O mundo apresenta-se perante nós num desenrolar temporal imparável, a mudança, a renovação, as transformações permanentes implicam a impossibilidade de parar o devir temporal, e os fenómenos são apreendidos através da duração, fluidez, sucessão, transição e continuidade indivisível. Não há, pois, uma separação dos acontecimentos físicos e psicológicos, há um tempo vivido e intuído pela consciência. A este propósito Bergson escreveu: “Não há dúvida de que o tempo, para nós, confunde-se inicialmente com a continuidade da nossa vida interior. O que é essa continuidade? A de um escoamento ou de uma passagem que se bastam a si mesmos, uma vez que o escoamento não implica uma coisa que se escoa e a passagem não pressupõe estados pelos quais se passa: a coisa e o estado são mais que instantâneos de transição artificialmente captados; e essa transição, a única que é naturalmente experimentada, é a própria duração.” 2
A pintura lida com esta circunstância e contrapõe ao mundo em mudança uma possibilidade de “parar o tempo”, de resgatar os filhos de Cronos devorados pela inquebrantável vontade de tudo determinar. Esta noção de tempo é, contudo, uma noção exterior à própria obra, na Pintura, na Escultura ou na Arquitetura. Nelas, a noção do tempo radica em conceitos que as suportam ou lhes ampliam os sentidos de leitura, mas não está inscrita na sua estrutura interna, como acontece na Música, no Teatro, na Fotografia e no Cinema.
O tempo esteve desde sempre ligado à ideia de sucessão. O Homem assimilou os fenómenos da natureza, que se manifestam em sucessão como o dia e a noite, os dias do ano ou as estações. Este tempo cíclico que o Homem interiorizou, tem vindo a ruir a partir da revolução industrial do século XIX, com as alterações verificadas nos transportes e nas comunicações e no final do século XX pelo surgimento das tecnologias do virtual. Há uma aceleração que altera o modo como o Homem se relaciona com a realidade.Tudo contribui para a perda da noção do tempo histórico, um tempo com passado, presente e futuro, dando lugar a um tempo real, que é um tempo mundial, com um presente único. Paul Virilio refere-se a esta questãonos seguintes termos:”Desmesuradamente entumecido pelo abalo das nossas técnicas de comunicação, o presente perpétuo desempenha subitamente a tarefa de iluminação da duração. Renovando a alternância da noite e do dia solar que, ontem, organizava as nossas efemérides, o dia sem fim da receção dos acontecimentos produz uma iluminação instantânea da realidade que deixa na sombra a importância habitual da sucessibilidade dos factos (…)” 3. O presente torna-se o único protagonista, um presente avesso à hipótese de narrativa com presente, passado e futuro.
A especulação metafísica em torno do tempo permanece em aberto, uma dúvida, uma incompreensão que se assemelha à dificuldade que o Homem tem em lidar com a morte. A ideia de eternidade surge como tentativa de superação das limitações temporais e a Arte uma centelha que incorpora o que existiu para que existíssemos.
Domingos Rego
Azeitão, Abril de 2017
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|