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Traço Contínuo

Traço Contínuo


Desenhos de Domingos Rego e Cecília Costa em diálogo

 

Dando sequência aos trabalhos anteriormente apresentados na Galeria João Esteves de Oliveira, exponho um conjunto de trabalhos recentes que aprofundam e expandem temáticas reveladas anteriormente. São desenhos que suscitam uma reflexão sobre as relações físicas com o espaço construído e com a natureza. O espaço é aqui apresentado como pretexto de relação háptica e holística com o real, como se as casas de Richard Neutra, que estão presentes num dos painéis da exposição, reivindicassem o tacto e a memória para serem percebidas, e os planos de cor que cortam as composições funcionassem como cortinas que se abrem ou se fecham para uma realidade em que a natureza envolve, cruza e faz parte do edificado.

A matéria joga um papel importante na sugestão táctil destes desenhos, adensando-se ou diluindo-se, aplicada com espátulas, ou soprada à maneira das “figuras de sopro” surrealistas, aceitando o acaso e perseguindo seus “acidentes favoráveis”, como Jean Dubuffet gostava de os designar.
As composições abstractas que evocam escadas e elementos arquitectónicos lembram-nos a importância de um deambular atento que envolva todos os sentidos. As escadas não são só a possibilidade de elevação ou descida, são a prova da necessidade de atenção, estruturas arquitectónicas que pontuam a história da arte: das escadas labirínticas de Piranesi, às estruturas impossíveis de Escher, das escadas livres de Beuys e Louise Bourgeois, ao Nu descendo as escadas, de Duchamp. E, num plano mais simbólico, a escada de Dürer, na Melancolia I, ou, na arte do nosso tempo, as escadas nas obras de Anselm Kiefer. E se as escadas evocam essa possibilidade de deslocação entre planos, e uma certa ideia de duração (Bergson), a janela é a estrutura arquetípica da contemplação, a metáfora tantas vezes reinventada do desenho e da pintura.

A natureza adquire uma particular relevância nos desenhos de flores e de frutos, que surgem, muitas vezes, em espaços obscurecidos, fundos negros que sugerem o acto de desenhar no escuro, para, mais uma vez, suscitarem a noção de atenção associada ao desenho.

Traço contínuo representa, pois, o rastro que fica dessa relação especial que estabelecemos com o real através do desenho. Derrida assinalou de forma exemplar, em Memórias de Cego, essa particular forma de nos relacionarmos com o mundo, “uma espécie de sinergia que coordena as possibilidades de ver, de tocar, de mover. E de ouvir e entender porque são já palavras de cego que eu assim desenho.” 1

Desde o início, a obra de Cecília Costa tem lidado com os acertos e os enganos do olhar, com as diferenças e pormenores escondidos que exigem ponderação, com os jogos subtis que demandam a participação do espectador. Esses aspectos são reconhecíveis nas fotografias e nas instalações que põem em jogo dispositivos sonoros, visuais e escultóricos.
Formuladas de um outro modo, as questões que referimos colocam-se nos desenhos. Também nesta área, uma reflexão sobre o ver nos é proposta. As linhas adquirem um corpo, surgem como que segregadas pelas representações, estabelecendo itinerários improváveis entre os olhos e as mãos, ganhando a consistência que transforma o olhar em ver, extravasando os limites da composição e depositando-se fora de campo.

A linha adquire várias qualidades: de fio de Ariadne que nos permite regressar a território conhecido, à linha do tecido de Penélope, cuidadosamente urdido durante o dia e desfeito durante a noite, prolongando até ao absurdo um desfecho que não se deseja. A linha é a manifestação plástica essencial do desenho, a fronteira que circunscreve e delimita, o traço que liga o pensamento, a visão e a expressão.

Nos trabalhos em presença, as linhas desenham-se no espaço provocando tensões, lidando com o vazio da página e tornando-o entidade tangível, lugar de encenação dos limites e potencialidades do próprio corpo. A luz branca da página, de tão intensa, devora partes das cenas, mas, e apesar de tudo, as linhas resistem e, por vezes, geram volumes por acumulação, materializando de forma exemplar a ligação que acontece entre o visto, o representado, e o gesto que lhe dá forma.

 

Azeitão, 11 de Janeiro de 2015

Domingos Rego

 

 


folha de sala
 
 
1. Jacques Derrida, Memórias de Cego: O auto-retrato e outras ruínas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, pág. 11
 
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