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A matéria do tempo
O tempo como tema na produção
artística contemporânea
Domingos Rego
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Sinopse
A MATÉRIA DO TEMPO
O tempo como tema na produção artística contemporânea
O tempo da fruição artística é sempre um tempo subjectivo, que provoca um corte com a experiência do dia a dia.
Interessa-nos reflectir sobre a obra de autores contemporâneos que, tendo a consciência da velocidade a que tudo se passa hoje, adoptam uma atitude de serena crítica, operando com o tempo, dilatando-o, incluindo-o como matéria-prima do seu próprio trabalho e convidando o espectador a participar nessa experiência. As novas tecnologias têm vindo a alterar profundamente as relações que o Homem estabelece com o espaço, o tempo e a matéria; mas, como veremos, a pertinência das obras tem mais a ver com a visão do mundo dos artistas do que com as linguagens e tecnologias adoptadas.
Abstract
A MATTER OF TIME
Time as subject matter in contemporary art practices
The time of art fruition is always a subjective one, which creates a break in our experience of the everyday.
We are going to examine the works of contemporary authors who, while being aware of the fast pace we live in today, adopt a calm critical attitude. These authors use time, expand it and make it into the subject of the work itself, inviting the viewer to participate in its experience. New technologies have been altering profoundly our relationship to space, time and matter. We will focus here on how the significance of these works has to do more with the artists vision of the world rather than with their vocabulary or the adopted technologies.
Palavras-chave: tempo, duração, fotografia, pintura, vídeo
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A matéria do tempo
O tempo como tema na produção
artística contemporânea
Domingos Rego
O cliente: Deus fez o mundo em seis dias, e você, você não foi
capaz de me fazer umas calças em seis meses.
O alfaiate: Mas, meu caro senhor, olhe bem para o mundo,
e olhe para as suas calças.
Samuel Beckett 1
A consciência do tempo, como algo que nos distingue dos restantes animais, parece ser uma constante quando procuramos perscrutar as origens da arte. As marcas que os nossos antepassados deixaram na arte rupestre terão, nesta perspectiva, ocorrido a partir do momento em que existiu uma consciência da transitoriedade e finitude da vida.
Perceber como o factor tempo integra muita das reflexões e práticas artísticas contemporâneas é o propósito das breves notas que aqui se apresentam.
Tratar do tempo implica perceber as diferentes facetas que este representa na experiência humana, nomeadamente do ponto de vista simbólico mas, também, económico e social.
As transformações tecnológicas verificadas no século XX, com a aceleração do devir histórico, têm vindo a alterar profundamente as relações que o Homem estabelece com o espaço, o tempo e a matéria.
Importa-nos sobretudo pensar a obra de autores que, sintonizados com o seu tempo, logo conscientes da velocidade contemporânea, operam com o tempo, dilatando-o, incluindo-o como matéria-prima do seu próprio trabalho e convidando o espectador a participar nessa experiência. É parafraseando Santo Agostinho que Norbert Elias inicia o livro Sobre o Tempo: “Quando não me perguntam sobre o tempo, sei o que ele é, dizia um ancião cheio de sabedoria. Quando me perguntam, não sei.”
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A pesquisa do sociólogo alemão incide, justamente, na tentativa de perceber como se pode medir algo que não é percebido pelos sentidos, algo invisível, que não se pode agarrar, tocar ou saborear. Nesta obra, Elias defende que o tempo não existe em si mesmo, ao contrário das teses de Kant ou Newton, como veremos mais adiante, mas constitui-se como símbolo social, resultado de um longo processo de aprendizagem que o autor designa por “processo civilizador”; expressão que dá o título a uma obra anterior em que aborda a forma como o Homem passou da fase de controlo das suas pulsões através de mecanismos exteriores, a uma fase de auto-controlo. A estabilização destes mecanismos internos propicia aquilo que Elias designa por “habitus”, ou seja, um saber integrado, “uma segunda natureza”. O tempo encontra-se nesta categoria. Para Elias o tempo é um “habitus”, algo que resulta do processo civilizador. Neste sentido escreve: “O facto dessa regulação social do tempo começar a assumir um aspecto individual, desde uma etapa muito precoce da vida, contribui em larga escala, certamente, para consolidar a nossa consciência pessoal do tempo e torná-la inabalável […] Essa individualização da regulação social do tempo apresenta, com um carácter quase paradigmático, os traços do processo civilizador.”
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A ditadura do tempo é de natureza social, construída, mas resulta também de dados biológicos como, por exemplo, o envelhecimento. É no cruzamento dos factores biológicos e sociais que se verifica o desenvolvimento do indivíduo.
O calendário, como hoje o conhecemos, representa na sua perspectiva: “uma síntese de nível altíssimo, uma vez que relaciona posições que se situam, respectivamente, na sucessão de eventos físicos, no movimento da sociedade e no curso da vida individual.” 4
Um aspecto central do pensamento de Norbert Elias consiste no entendimento do tempo como paradigma do processo civilizador. Deixa de haver um mundo dividido entre indivíduo, sociedade e natureza, para haver algo global, fundado na interdependência dessas entidades. No que diz respeito à relação entre natureza e sociedade, refere o autor: “Esses dois campos são colocados como independentes um do outro, como independentes gostariam de ser os grupos de especialistas que se dedicam ao estudo de um e de outro. Na realidade, a humanidade e portanto a ‘sociedade’, a ‘cultura’, etc. não são menos naturais nem menos integrantes de um único e mesmo universo do que os átomos ou as moléculas.” 5 E mais à frente acrescenta: “O estudo do ‘tempo’ é o de uma realidade humana inserida na natureza, e não de uma ‘natureza’ e de uma realidade humana separadas.”
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Elias aborda, ainda, os vários posicionamentos no plano filosófico ou no campo da física, para lhes perceber as limitações. Assim, para a física, e para um autor como Newton, o tempo apresenta-se como um dado objectivo do mundo, com a diferença de não ser perceptível. Para Kant é um dado a priori da experiência. Para Kant, espaço e tempo representam uma síntese a priori. Na perspectiva kantiana, o Homem possui dois níveis de percepção, ou sensibilidade: um externo e outro interno. O externo seria composto pela nossa noção de espaço, ou seja, como nos situamos de acordo com determinadas coordenadas e como nos deslocamos; o nível interno teria a ver com a nossa percepção do tempo.
Tanto para a física, como para a filosofia o tempo é um dado natural; para Elias o tempo não é mais que a “sincronização das actividades humanas”, como tal construído pelo Homem. Assim, a aprendizagem, a sedimentação de conhecimentos que permite a síntese temporal resulta de uma perspectiva histórica da trajectória evolutiva das sociedades. Sem o contacto com o património histórico perder-se-iam os vínculos de relação que permitem a continuidade e a evolução nas várias áreas do conhecimento.
Há, portanto, uma aprendizagem cultural do tempo, mas também uma aprendizagem individual, que resulta do contacto, desde que nascemos, com os dispositivos de regulação da instituição tempo. Estes dispositivos (relógios, calendários, horários, etc.) exercem um poder coercivo que cada indivíduo vai integrando num processo de auto-disciplina essencial à vida em sociedade.
A este respeito Norbert Elias escreve: “Assim como uma língua só pode exercer a sua função enquanto é a língua comum de todo um grupo humano, e viria a perdê-la se cada indivíduo fabricasse para si a sua própria linguagem, os relógios, exactamente, só podem exercer a sua função quando as configurações cambiantes formadas pelos seus ponteiros móveis – portanto, numa palavra, as ‘horas’ indicadas por eles – são comuns à totalidade de um grupo humano. Eles perderiam o seu papel de instrumento de medida do tempo se cada indivíduo fizesse o seu próprio tempo. É essa uma das fontes do poder coercivo que o tempo exerce sobre o indivíduo.” 7
A concepção do tempo esteve desde sempre ligada à ideia de sucessão. O Homem interiorizou os fenómenos da natureza, que se manifestam em sucessão como o dia e a noite, os dias do ano ou as estações. A estes ciclos associou os ritmos e as tarefas do seu quotidiano, relacionando o dia à actividade, ao trabalho e à energia que aplica nessas actividades e a noite ao repouso, ao sono e ao reequilíbrio das funções vitais.
Este tempo cíclico que o Homem se habituou a conhecer, tem vindo a ser posto em causa a partir da revolução industrial do século XIX, com as alterações verificadas nos transportes e nas comunicações e no final do século XX pelo surgimento das tecnologias do virtual. Há uma aceleração que altera o modo como o Homem se relaciona com a realidade. O sociólogo francês Jean Baudrillard equaciona esta questão nos seguintes termos: “Nas sociedades demasiado rápidas, como a nossa, o efeito de realidade esbate-se: a aceleração faz desordenarem-se os efeitos e as causas, a linearidade perde-se na turbulência, a realidade, na sua continuidade relativa, já não tem tempo para ter lugar.” 8
O tempo que nos separava dos lugares mais distantes foi reduzido, assim como o tempo necessário à comunicação entre as pessoas. É como se a teoria da relatividade de Einstein se tornasse presente, revelando porque é que o tempo para alguém que viajasse à velocidade da luz se tornaria mais lento. O que Einstein faz é reformular o conceito de tempo de Newton, o de um tempo único, uniforme, aplicável a todo o universo físico. Einstein demonstra que o tempo é uma forma de relação e não um fluxo objectivo, como são objectivos o mar, os rios ou as montanhas. 9
Tudo concorre para a perda da noção do tempo histórico, um tempo com passado, presente e futuro, dando lugar a um tempo real, que é um tempo mundial, com um presente único. Paul Virilio refere a este propósito o seguinte: ”Desmesuradamente entumecido pelo abalo das nossas técnicas de comunicação, o presente perpétuo desempenha subitamente a tarefa de iluminação da duração. Renovando a alternância da noite e do dia solar que, ontem, organizava as nossas efemérides, o dia sem fim da recepção dos acontecimentos produz uma iluminação instantânea da realidade que deixa na sombra a importância habitual da sucessibilidade dos factos […]” 10
Em Cibermundo: A Política do Pior, um livro que regista uma entrevista feita por Philippe Petit, a propósito da aceleração do tempo mundial, a evolução tecnológica e a sociedade da informação, Paul Virilio reflecte sobre o conceito de História na actualidade, incorporando os conceitos de tempo, espaço, velocidade, corporeidade, trajecto e acidente, como noções decisivas para a compreensão da vida do Homem na transição do século XX para o século XXI.
O processo histórico é indissociável, na perspectiva de Virilio, do modo como os factos são apresentados pelos media, como já assinalara em A Velocidade de Libertação. O directo e a “imediatização” de tudo são entendidos como factores que retiram temporalidade aos acontecimentos. É dada primazia ao presente, um presente esquivo à hipótese de narrativa com presente, passado e futuro. Ao referir a presentificação da História, a aceleração das informações e a política da velocidade, Virilio chama a atenção para o que designa de “amputação do volume tempo” e nesse contexto refere: “ O tempo é volume. Ele não é somente espaço-tempo no sentido da relatividade. É volume e profundidade de sentido, e a chegada de um tempo mundial único que vem liquidar a multiplicidade de tempos locais é uma perda considerável da geografia e da história.” 11
Assim, um novo conceito de tempo traz consigo uma nova noção de espaço e de velocidade. Por outras palavras, se o presente é avassalador, a velocidade dominante, o resultado é a redução do espaço. A própria noção de trajecto, de viagem é alterada, “a hiperconcentração do tempo real reduz a nada todos os trajectos: o trajecto temporal prevalece em benefício de um presente permanente, e o trajecto da viagem – daqui ali, de um ao outro – em favor de um ‘estar-lá’ que Michel Serres chama o ‘fora-lá’”. 12
O acidente é, no contexto da análise de Virilio, a face escondida da evolução tecnológica, o grão de areia na engrenagem, é a ultrapassagem dos limites da velocidade e da segurança tecnológica.
Constata-se assim, que para Paul Virilio, tal como para Baudrillard, a aceleração da História e a evolução tecnológica a ela associada necessitam de ser pensadas de modo crítico, ao contrário do deslumbramento ingénuo do cidadão comum ou do modo calculado e com fins economicistas dos poderes e dos estados.
Se é verdade que as teses de Elias ou Virilio, que abordámos aqui, afastam qualquer possibilidade de especulação metafísica em torno do tempo, não é menos verdade que permanece em aberto, uma dúvida, uma incompreensão que se assemelha à dificuldade que o Homem tem em lidar com a morte. A ideia de eternidade surge como tentativa de superação das limitações temporais e a história do Homem é, de certo modo, uma história de superação, uma história que integra todos os passados, todas as opções do presente e todos os futuros anunciados.
Estando o tempo profundamente ligado à experiência humana, compreende-se que a sua inclusão nas obras de arte acontecesse naturalmente, fosse como referência narrativa nas pinturas de Giotto, ou aludindo ao transitório de tudo nas vanitas. 13
A arte nunca escapou ao fascínio e ao mistério do tempo, aspirando a vencê-lo, por obras mais ou menos valorosas como nos lembrava Camões no Canto Primeiro de Os Lusíadas: “E aqueles que por obras valorosas// Se vão da lei da Morte libertando: Cantando espalharei por toda a parte, // Se a tanto me ajudar o engenho e arte.” Digamos que a produção artística sempre lidou com a inevitabilidade da passagem do tempo, como sempre aspirou à intemporalidade. É o que se diz das grandes obras, que são intemporais. Resistem e permanecem, mesmo quando os seus autores já morreram.
Esta noção de tempo, é contudo, uma noção exterior à própria obra, na pintura, na escultura ou na arquitectura. Nelas, a noção do tempo radica em conceitos que as suportam ou lhes ampliam os sentidos de leitura, mas não está inscrita na sua estrutura interna, como acontece na música, no teatro, e a partir do século XIX, na fotografia e no cinema.
Com o advento da fotografia no séc. XIX, resultado dos trabalhos de Nièpce (1ª fotografia - 1826) e Daguerre (1º daguerrotipo - 1829), verifica-se um dado novo relativamente ao papel do tempo na produção das imagens. Este passa a revelar-se de modo evidente, torna-se visível pelo modo como as imagens são captadas. Esta noção terá desenvolvimentos com o surgimento do cinema, logo depois com os trabalhos dos irmãos Lumière na Europa (1º filme - 1885), e Thomas Edison nos Estados Unidos.
Estas primeiras experiências, obviamente, não se inscrevem numa lógica de produção artística, sendo caminhos exploratórios, que não deixam indiferentes os artistas, pensando nas possibilidades expressivas que estes novos meios tecnológicos comportam, mas o que trazem implica um novo olhar sobre a realidade, integrando o tempo e a memória de um modo mais claro.
Os trabalhos do francês Etienne-Jules Marey (1830-1904) (fig.1) e do inglês Eadweard Muybridge (1830-1904) no campo da cronofotografia viriam a ter uma influência decisiva no trabalho dos artistas futuristas, bem como na obra de Marcel Duchamp (1887-1968) que nos interessa aqui sublinhar.
Na análise que empreenderam do movimento dos animais e das pessoas Marey ou Muybridge perseguiam as relações entre espaço e tempo.
É evidente a influência destas pesquisas na obra Nu Descendant un Escalier, nº2 (1912) de Marcel Duchamp (fig.2) que introduz a problemática da quarta dimensão, reformulando a experiência que Muybridge fizera em 1884-85 com o seu trabalho Descending Stairs and Turning Around (fig.3). Marcel Duchamp irá ter, de resto, um papel decisivo na importância que o tempo assumiu na arte moderna ao provocar a mudança de paradigma do objecto para o conceito.
No âmbito do movimento futurista italiano refira-se o manifesto do Fotodinamismo Futurista do fotógrafo Anton Giulio Bragaglia, de 1911. As concepções aí defendidas questionavam o sentido da arte fotográfica de finais do século XIX e início do século XX, nomeadamente a cronofotografia. Para Bragaglia, a questão central não era a decomposição do movimento, de um modo rigoroso, científico, mas a própria sugestão do vivido, do experimentado com esse movimento, o que implicava a valorização da ideia de contínuo, de trajectória, de movimento perpétuo. Estas concepções materializaram-se em obras como Dactilografia (1911) ou Violoncelista (1913) (fig.4 e 5).
As ideias defendidas por Bragaglia encontram paralelo em alguns dos tópicos centrais do pensamento de Henri Bergson (1851-1941). Para o filósofo francês, o tempo, positivista, científico, mensurável, homogéneo, não era defensável, contrapondo a esta concepção um tempo que é, essencialmente, duração, fluidez, sucessão, transição e continuidade indivisível. Não há, pois, uma separação dos acontecimentos físicos e psicológicos, há um tempo vivido e intuído pela consciência. A este propósito atente-se nas palavras de Bergson: “Não há dúvida de que o tempo, para nós, confunde-se inicialmente com a continuidade da nossa vida interior. O que é essa continuidade? A de um escoamento ou de uma passagem que se bastam a si mesmos, uma vez que o escoamento não implica uma coisa que se escoa e a passagem não pressupõe estados pelos quais se passa: a coisa e o estado são mais que instantâneos de transição artificialmente captados; e essa transição, a única que é naturalmente experimentada, é a própria duração.” 14
Referimos anteriormente o surgimento do cinema como um momento chave nesta nova percepção do tempo nas artes visuais. O trabalho do realizador soviético Eisenstein (1898-1948) desenvolveu-se no contexto das vanguardas soviéticas, aproximadamente entre 1915 e 1932. Apresenta-se como um caso claro de interacção entre arte e tecnologia. Este facto deve-se em grande medida à formação multidisciplinar de Eisenstein em matemática, engenharia e arte. O que o seu trabalho traz de mais inovador é o conceito de montagem. Este conceito implica a manipulação do tempo, criando ritmos acelerados, provocando lapsos temporais, o uso de imagens captadas com várias câmaras. É imediata a analogia entre este conceito e as propostas do cubismo, uma vez que estas montagens sugerem múltiplas perspectivas da realidade, ampliando a percepção e alterando-a.
Eisenstein, Dziga Vertov, Walter Ruttman irão influenciar o trabalho do realizador português Manoel de Oliveira que na sua primeira obra Douro, Faina Fluvial (1931), um documentário de 20 minutos sobre o Porto e o rio Douro, apresenta um filme que não se satisfaz com a mera observação da realidade social, mas apresenta um outro olhar sobre o real, baseado num encadeamento rigoroso das imagens e numa montagem veloz. Não deixa de ser curioso pensar que a rodagem deste filme foi iniciada em 1929 e que, por exemplo, é desse mesmo ano a estreia de O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov, o que nos dá uma ideia da sintonia do realizador português com as vanguardas da altura. No longo percurso artístico de Manoel de Oliveira é notória a atenção ao tempo, desde a montagem vertiginosa de Douro, Faina Fluvial aos planos que dilatam o tempo de Amor de Perdição (1978).
Mencionámos antes o contributo de Marcel Duchamp na alteração de paradigma na arte moderna, centrando a importância do conceito nas práticas artísticas em detrimento do objecto. Esta influência marcará, particularmente nos anos 50 e 60, movimentos e práticas artísticas.
É neste contexto que valerá a pena mencionar dois autores que trabalham com o tempo, integrando-o de um modo especial no seu trabalho. O primeiro caso é John Cage que, em 1952, concebe 4’33’’, uma peça musical feita de silêncio, exactamente o tempo de silêncio que o título sugere e Sleep (1963), um filme de Andy Warhol, que documenta o sono de alguém durante cerca de oito horas. São duas experiências radicais que só servem para referir a importância do tempo na produção artística desta época.
O grupo Fluxus herdeiro das práticas dadaístas, promovia acontecimentos que combinavam várias linguagens e integravam a participação dos espectadores, retomando a ideia de Duchamp que atribuía ao espectador o papel de completar o sentido da obra. Para além de Fluxus, o tempo terá um papel decisivo em movimentos ou práticas artísticas tão diferentes como os Happenings, Performances, Arte Cinética, Instalações ou Vídeo, importância que se estende até à actualidade e que teremos oportunidade de assinalar neste trabalho.
No contexto das transformações ocorridas na arte americana dos anos sessenta e, em particular, nas pesquisas que valorizaram o pensamento e a reflexão em lugar do objecto, assinale-se a arte conceptual, nela, o uso do tempo e a sua manipulação assumiu relevância. Essa corrente artística foi tratada sistematicamente por Lucy Lippard no livro Six years: The dematerialization of art object from 1966 to 1972
15, aí, é possível encontrar, por exemplo, a referência ao grupo Pulsa, colectivo artístico que tinha como tema central do seu trabalho o tempo, o tempo como material de trabalho nas obras de arte, criando environments em espaços interiores ou exteriores, cuja principal finalidade consistia na observação da forma como a passagem do tempo ía recriando essas intervenções.
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São também dessa época a série de trabalhos de Douglas Huebler, Duration Pieces , séries defotografias feitas com intervalos regulares de tempo, captando sempre o mesmo espaço do Central Park, em Nova Iorque, registando as transformações do espaço em função da entrada e saída de cena de pombos e patos do parque. Essas obras eram expostas sem uma ordem sequencial, conjuntamente com a data e as condições da captação das imagens. A propósito do interesse de Huebler sobre o tempo recorde-se a sua célebre frase que ficou como referência da arte conceptual, proferida em 1969 e citada por Lucy Lippard no mesmo livro: “O mundo está cheio de objectos, mais ou menos interessantes; não desejo juntar-lhe nenhum outro. Prefiro simplesmente constatar a existência das coisas em termos de tempo e/ou lugar.” 17
Um outro autor que tem trabalhado o tempo de modo recorrente é o americano Bill Viola, explorando a linguagem do vídeo que ele próprio define como uma forma de esculpir o tempo. Numa entrevista dada a Octávio Zaia em Janeiro de 1989 e publicada na revista El Paseante, Bill Viola afirma, esclarecendo melhor esta definição: “Quero dizer que o tempo é a matéria-prima do vídeo, apesar do que as pessoas escrevem sobre as minhas imagens, sobre a cor e sobre todo esse conjunto de coisas tangíveis. Se eu quisesse, tinha podido fazê-las com a fotografia ou com pintura, mas atrai-me trabalhar com vídeo porque é uma expressão do tempo e o tempo é o elemento autêntico no vídeo e a duração do tempo é para a consciência humana o que a luz é para os olhos. Permite que ocorra o pensar, a experiência e a emoção.” 18
A tremenda energia libertada por um raio está presente na obra, de 1986, Do Not Know What It Is I Am Like apresentada pela primeira vez no Instituto de Arte Contemporânea de Boston. O que aquele instante tem de fugaz, tem também de impressivo, permanecendo na memória de quem alguma vez presenciou o fenómeno.
Noutra obra, Slowly Turning Narrative, de 1992, apresentada no MOMA de Nova Iorque, Bill Viola concebe uma vídeo instalação que consistia numa grande sala escura, no centro da qual se encontrava um ecrã que girava lentamente em torno de um eixo. De um dos lados existia um espelho e, do outro lado, um ecrã convencional. Na sala havia projectores de vídeo nas paredes que projectavam sobre o ecrã móvel um grande plano de um rosto a preto e branco, noutro, imagens com cores vivas de crianças num carrossel, imagens de um Carnaval, um edifício a arder e crianças brincando. Todas estas imagens se encadeavam rapidamente em contraponto com a lentidão da imagem do rosto. 19
O que o autor põe em confronto é a vida interior e a vida exterior, o tempo da reflexão e o tempo da acção.
Também em Haven and Earth, de 1992 duas realidades se confrontam. Na tensão provocada pela proximidade dos dois ecrãs, é o tempo de uma vida que se formula, baralhado pela fusão das imagens que se reflectem mutuamente.
Em muitas obras Bill Viola usa a câmara lenta como forma de dilatar o tempo: The Greeting de 1995 (fig.6), que alude a uma cena de visitação, a partir de La Visitazione, 1528-1530 (fig.7), do pintor maneirista italiano Jacopo Pontormo (1494-1557), é disso exemplo, adoptando uma estética pictórica que é dada pelos cenários e pelas cores; Sleepers, de 1992, uma vídeo instalação onde sete barris com água têm, no seu interior, monitores a preto e branco com imagens de pessoas a dormir. Para além da analogia com o filme Sleep de Andy Warhol que já referimos, importa sublinhar a analogia que a água promove com a vida intra-uterina e com a experiência de um tempo anterior ao nascimento. Mas também convoca a noção do tempo própria do sono e dos sonhos. Num livro com o título Os sonhos e o tempo, Maria Zambrano estabelece um paralelo entre os sonhos e a obra de arte relativamente à noção de tempo, afirmando: ”Quando através de uma obra de arte se produz este modo de ver na vigília, ver que é assistir e sentir, tem a mesma estrutura que nos sonhos correspondentes: o tempo deteve-se para a consciência perante este outro tempo de um passar perante ela e que se afasta dela: perante algo semelhante a uma despedida". 20
Para concluir, gostaríamos de mencionar duas obras, o vídeo I’m not the girl who misses much (1986) – (fig.8) de Pipilotti Rist e A matter of time (2005) – (fig.9) de Richard Serra. Consideremos estas duas referências como paradigmas da inclusão do tempo em obras de arte contemporâneas: no vídeo de Rist é usado o tempo explorando a sua plasticidade, através da alteração dos ritmos normais de captação e apresentação das imagens e do som, provocando uma alteração assinalável no modo como nos relacionamos com a realidade; em Serra, verifica-se a instauração de novas coordenadas espácio-temporais, gerando, através da expansão desmesurada das dimensões da peça, desorientação e um corte com a experiência do quotidiano. Essas duas facetas, a de sugerir novas leituras sobre a realidade e o corte com os hábitos perceptivos, parecem ser, em síntese, muito do que a arte contemporânea tem para oferecer, reflectindo sobre o tempo e sobre todas as outras perplexidades humanas.
Azeitão, Junho de 2007
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