home
m
 

O tempo de um gesto

Domingos Rego

 

___________________________________________________

Texto que acompanha a exposição de obras de Carlos Correia
na Colecção Marin/Gaspar, Alvito, 2019.
Publicado em Da inquietação
na pintura
, Colecção Memo, M/G, 2020.

___________________________________________________

 

 

À memória do meu amigo Carlos



O cliente: Deus fez o mundo em seis dias, e você, você não foi
capaz de me fazer umas calças em seis meses.

O alfaiate: Mas, meu caro senhor, olhe bem para o mundo,
e olhe para as suas calças.

Samuel Beckett
1



Em 2012, na Appleton Square, em Lisboa, Carlos Correia expôs Le Plaisir au Dessin; Le Plaisir au Dessin; Le Plaisir au Dessin, assim mesmo, um título repetitivo para uma ação também ela repetitiva, um ritual compulsivo, que consistiu em desenhar/escrever manualmente todo o livro de Jean-Luc Nancy, Le Plaisir au Dessin. Este livro nascera de uma exposição com o mesmo nome, realizada pelo Museu de Belas Artes de Lyon, patente entre outubro de 2007 e janeiro de 2008, reunindo obras que celebravam o Desenho enquanto disciplina artística, mas que lembravam a dimensão gratificante do ato de desenhar, no plano físico e também como estímulo intelectual. O que Carlos Correia perseguiu nesta obra foi uma forma de dilatar o tempo e intensificar o gesto primordial do desenho, como se, na recorrência do gesto, outras ideias, outras formas pudessem emergir.

Não era com certeza o prazer associado ao ato de desenhar que estava presente nesse exercício exigente a que se obrigou. Esse propósito é visível em muitos trabalhos que exploram a simplicidade da marca gráfica sobre post-its, em pequenas animações, em desenhos feitos com uma grande fluência de registo, deixando transparecer as inflexões do gesto e do pensamento, diretos e expressivos. É o que acontece com alguns dos desenhos em exposição da coleção Marin/Gaspar, desenhos que partem de trabalhos de autores de vários períodos históricos: por exemplo aquele que comenta La Grande baigneuse ou Baigneuse Valpinçon, 1808, de Ingres, no qual podemos constatar a procura da estrutura linear dominante, as relações entre as curvas do corpo e o dinamismo dos panejamentos; vários trabalhos de Gerard Richter, entre os quais Uma Leitora, e uma paráfrase do artista alemão ao Nu Descendo as Escadas de Duchamp; Philip Guston na exploração duma noção tão cara a Carlos Correia, a mise en abyme; uma leitura, tocando o essencial de Dois Homens Contemplando a Lua, a célebre pintura do artista romântico alemão Caspar David Friedrich, que terá fascinado e inspirado Beckett para a criação de À Espera de Godot, pela quietude da cena, pela relação de escala das figuras com a paisagem noturna. Friedrich será, de resto, pretexto para um conjunto coeso de pinturas que integram esta exposição, pequenos formatos que acentuam as marcas da pincelada na construção da paisagem, pela presença humana reduzida à sua mínima potência, e que têm, posteriormente, desdobramentos em variações compositivas que excluem mesmo essa presença, como se a paisagem, de tão sublime e majestosa, tudo excluísse, menos o olhar cúmplice do espetador.

Voltando a Le Plaisir au Dessin e a Nancy, este começa o livro evocando o sentido inaugural do desenho, acentuando a primazia do gesto na revelação da forma, no seu nascimento, para, de seguida, nos lembrar que mesmo a palavra idea, em Platão, tem o sentido de “forma visível” 2. Há, pois, uma estreita e íntima relação entre desenho, ideia, gesto, perceção e forma visível.

Federico Zuccari (1543-1609) havia colocado em evidência a atividade intelectual ao desenhar, situando a conceção da obra na confluência da ideia e do gesto, chegando à célebre formulação de dois conceitos chave, desenho interno e desenho externo, e operando uma distinção da imagem imaterial da ideia, “forma sem substância corporal” e a forma tangível do desenho. O encontro entre espírito e matéria traduz-se nesta visão muito clara do autor: “E digo principalmente que desenho não é matéria, não é corpo, não é acidente de alguma substância, mas é forma, ideia, ordem, regra, termo ou objeto do intelecto, no qual são expressas as coisas entendidas, e ele se encontra em todas as coisas externas, sejam divinas sejam humanas, (…)” 3. A questão que Zuccari persegue tinha a maior importância, na altura, e colocava no centro do debate a relação mão/pensamento, tema central em autores como Vasari e Miguel Ângelo. O que estabelece a importância do desenho interno é o critério da ideia clara e distinta.

Didi-Huberman sublinha o facto de Disegno não se referir à deia expressa pela mão, ou ao inteligível colocado no plano do sensível, esclarecendo: “refere-se à ideia ela mesma, como a instância que subsume a intenção do pintor.” 4 Esta variação em relação à ideia tem como consequência a assunção do desenho como algo inato. Nesta medida, avança Huberman: “se o desenho é ideia então ele é inato: é compreendido como uma faculdade da alma, como um apriori.” 5

O mesmo Jean-Luc Nancy, no livro Le Poids d’une pensée 6 parte do facto de, etimologicamente, as origens de pensar e pesar estarem relacionadas, para indagar a possibilidade do pensamento ter um peso, tentando perceber como é que o pensamento pode ter uma projeção física, para lá da consensual imaterialidade que lhe é conferida. O que Nancy equaciona é a hipótese de existir um contínuo entre o corpo das coisas e a ideia que delas fazemos. Nesta perspetiva, o desenho interno pensado por Zuccari seria inseparável da sua experiência física. É, pois, neste contexto, que pode ser entendida esta obra de Carlos Correia, uma tentativa de dilatar o tempo através do desenho/escrita, mas também uma forma de estabelecer uma continuidade entre o pensamento e o ato criativo, algo que aponta para a conceção do tempo como duração, o conceito proposto e aprofundado por Bergson. Neste território, entre o gesto natural e o ato reflexivo, assentam alguns dos pilares fundamentais da obra que aqui nos ocupa.

Carlos Correia parte dos Desastres da Guerra, de Goya, para evocar a proximidade do artista com a própria vida, com sentido crítico, inquieto, livre e comprometido com o seu tempo. O mesmo Goya que produziu uma das duas representações de Saturno devorando seus filhos, que fazem parte da coleção do Museu do Prado. A outra é, como sabemos, de Rubens, para acentuar a inquietação com o tempo que tudo consome. Saturno, versão romana do deus grego Cronos, fora pintado por Goya num fresco, na sua própria casa, na Quinta del Sordo, só mais tarde transposto para tela, em 1873 (por Salvador Martinez) e integra as chamadas Pinturas Negras, expostas em permanência no museu. São recorrentes no percurso de Carlos Correia revisitações, pinturas d’après, de vários autores, citações diretas ou indiretas. O que esse interesse pela História da Arte põe em evidência é o sentido global e transversal da sua obra, dialogando plasticamente com esses autores, incorporando uma visão que encara o tempo como um tempo simultâneo, não o tempo sucessivo que traduz a consciência da transitoriedade e finitude da existência, que nos habituámos a considerar na natureza e na vida, mas um tempo que cruza problemáticas universais que, a seu modo, artistas de períodos muito diferentes abordaram, atualizando-as, como acontece com os desastres financeiros, como contraparte dos desastres da guerra. Esta visão está na base da conceção da História da Arte de Aby Warburg, que procurava elos mais subtis entre períodos distintos da História, prescindindo das palavras e valorizando afinidades imagéticas inesperadas. Essa visão da iconologia teve desenvolvimentos incontornáveis em Erwin Panowsky, mas vem até aos nossos dias com autores como Didi-Huberman, já citado, ou Victor I. Stoichita. Mas os artistas sempre praticaram essas associações, sempre se alimentaram do diálogo com autores do passado. Carlos Correia foi criando o seu proficiente Atlas, para evocar o Atlas Mnemosyne, de Warburg, de forma consciente e operativa.

A conceção do tempo que o associa à ideia de sucessão, sempre foi dominante. O modelo da natureza, com os ciclos do dia e da noite, as estações, etc., tornaram-se o paradigma de organização do quotidiano, ligando o dia à atividade e a noite ao descanso, ao sono e à recuperação da energia vital. Esse tempo cíclico que se sucede inexoravelmente, foi ganhando novos contornos com as alterações verificadas a partir da revolução industrial, com todas as transformações nos transportes, nas comunicações e, já no século XX, com as novas tecnologias da informação. Ocorreu uma aceleração que alterou a forma como o Homem se relaciona com a realidade. O sociólogo francês Jean Baudrillard equaciona esta questão nos seguintes termos: “Nas sociedades demasiado rápidas, como a nossa, o efeito de realidade esbate-se: a aceleração faz desordenarem-se os efeitos e as causas, a linearidade perde-se na turbulência, a realidade, na sua continuidade relativa, já não tem tempo para ter lugar.” 7

Em duas obras centrais desta mostra, Carlos Correia dá continuidade ao exercício da citação como forma de repensar o espaço pictórico e cruzar tempos de fruição e leitura das obras: A Balsa do Medusa, de 1819, óleo sobre tela, 491 x 716 cm, de Théodore Géricault (1791-1824), da coleção do Museu do Louvre, e, uma outra, também de enormes dimensões, igualmente no Louvre, As bodas de Caná, óleo sobre tela, 677 x 994 cm, de 1563, do pintor italiano Paolo Veronese (1528-1568). São duas pinturas de grandes dimensões, no caso da composição de Veronese é mesmo a maior pintura do Louvre e essa circunstância convida-nos a evocar o sentido imersivo destes trabalhos. Independentemente das narrativas que os originaram, postulam uma relação peculiar com o espectador, seja pelo carácter avassalador, esmagador e cenográfico, seja pela multiplicidade de olhares e direções que oferecem. No entanto, o que nos é mostrado é o espaço do museu, com os espetadores reduzidos a silhuetas, corpos sem espessura e sem expressão, quase espectros que deambulam no espaço museológico, anónimos e perdidos, acentuando ainda mais a nossa distância em relação às obras. O milagre (das Bodas) e a esperança (da Balsa) parecem arredados. Esta separação de planos parece antes indiciar um complexo jogo de espelhos que se opera entre as obras e os espetadores, acentuando o simbolismo desses contrastes, entre uma arte poderosa, mesmo quando na Balsa os corpos se aglomeram como coisas, nos interpelam e não nos permitem a indiferença.

A pintura foi sempre o fio condutor que orientou Carlos Correia nas suas pesquisas, um fascínio que tocou toda a pintura do ocidente, pelo menos desde o Quattrocento até aos nossos dias. A pintura era o pretexto para equacionar as transformações do regime e do estatuto das imagens, mas também o lugar das pequenas e grandes transformações sociais. Como vimos, a propósito da citação de Baudrillard, o século XIX constitui-se como um período de profundas alterações na vida das cidades, da eclosão sem retorno da indústria, etc. Poucos livros captam essas metamorfoses culturais e civilizacionais como as Passagens de Paris de Waler Benjamin 8, que a propósito das ruas cobertas da cidade de Paris, sublinha hábitos e olhares que se transformam e aludem à modernidade que se anuncia. O flâneur que vagueia sem propósito pelas passagens, mas também pelos boulevards que rasgam a cidade, torna-se uma metáfora desse caminhar sem destino. Essa transformação que Atget fixou em fotografias, que dão testemunho de um tempo novo que se aproxima, foi também o ponto de partida para a obra de Manet, que Carlos Correia aborda numa perspetiva muito peculiar, num desenho a carvão, que parte de um retrato de Zola, mostrado de lado, observado por um espetador de perfil.

No universo artístico cultural de Paris da segunda metade do século XIX prevalecia uma certa oposição à ideia de recriar obras do passado; Baudelaire, Thoré ou Zola contavam-se entre estes intelectuais. Manet tem uma atitude diferente, é um autor que provoca cortes decisivos com o passado, mas que não ilude a circunstância de ser importante compreender e reinventar as obras do passado, renovando os temas e o modo de os pintar. Existe uma naturalidade desconcertante nesta posição de sereno revolucionário. Na liberdade do gesto ao pintar, nas marcas visíveis das pinceladas, acentuando as características do próprio médium, assumindo os seus limites e possibilidades, é a natureza plástica da própria pintura que está em jogo, como assinala Greenberg, no seu texto de 1940, Towards a Newer Laocoon, abordando a ação de Manet do seguinte modo:

Entretanto, Manet, próximo de Courbet, enfrentava a questão do tema no seu próprio terreno, ao incluí-lo nas suas pinturas para, de seguida, o anular. A sua insolente indiferença em relação ao tema, que, por si, era muitas vezes sedutor, e o seu processo de trabalhar as cores planas eram tão revolucionários como o era a técnica impressionista de pintar. Tal como os Impressionistas, ele viu os problemas que se punham à pintura, fundamentalmente como uma questão de médium, e chamou a atenção dos espectadores para esse facto. 9

A obra em questão tem a particularidade de ter sido feita por Manet e oferecida ao próprio Zola, que apesar de não apoiar as incursões no passado, conseguiu descortinar a modernidade e a originalidade das obras de Manet. Le Déjeuner sur l´herbe será mesmo o ponto de partida para o célebre livro de Émile Zola, L’Oeuvre. Havia uma cumplicidade e reconhecimento que se estendia também a Baudelaire. Carlos Correia sublinha este facto com este desenho enigmático.

Outra obra em apreço revisita Cavalos de Corrida em Longchamp, de Degas, datado de 1871, e que seria o primeiro quadro do autor a incorporar uma coleção de um museu americano, neste caso, o Museu de Belas Artes de Boston. Carlos Correia pinta um fragmento generoso do quadro e sintetiza a expressão já de si essencial que Degas lhe imprimira. No texto seminal que lhe dedicou, Degas, Dança, Desenho, Paul Valéry refere que o pintor pintava um cavalo com a mesma delicadeza com que pintava uma primeira bailarina, e elogia-lhe o estudo e atenção dedicados às fotografias de Muybridge, o que lhe permitiu compreender o movimento correto dos cavalos. Aliás, a relação entre fotografia e pintura ganha em Degas uma nova e positiva expressão.

Com a sua ironia e capacidade de captar os sinais dos tempos, Duchamp não podia faltar neste “Atlas” de referências que Carlos Correia foi delineando. Desde logo aludindo à última grande obra de Duchamp, Étant donnés (1946/66) obra misteriosa e complexa que encontra aqui o seu lugar, pela importância que o autor atribuía ao vivido, pela natureza de instalação que conjuga um vasto conjunto de materiais e propósitos, detalhadamente estudados e documentados pelo Manual de Instruções para a Montagem de Étant donnés, livro que o Museu de Arte de Filadelfia, onde a obra se encontra, disponibiliza em edições Fac-similadas. Talvez nos importe sublinhar a distância e a profundidade simuladas pelo negro, o convite ao olhar direcionado, a imensa preparação e o tempo implicado na sua construção. Mas esta obra ganha redobrado sentido a par da pintura que Carlos Correia produziu a partir de uma fotografia de Duchamp, junto de um tabuleiro de xadrez, com peças concebidas pelo seu amigo Max Ernst, com quem tantas vezes jogou. Dizemos que ganha redobrado sentido porque o jogo de antecipação e de estratégia inteligente, implicado no xadrez, parece descrever o propósito último deste enorme quebra cabeças que representa Étant donnés.

O tempo está sempre implicado na construção e fruição das obras, mesmo quando Carlos Correia nos surpreendeu com a exposição Quadro/Mesa, na Galeria Pedro Oliveira, no Porto, em 2013, fixando a sua atenção em simulacros de espaços, preenchidos por cores vibrantes, criando ambiguidades de leitura entre a figuração e a abstração.

Gostaria de concluir estas breves palavras para referir o conjunto de autorretratos que integram a coleção Marin/Gaspar, nos quais o artista enverga t-shirts com autorretratos de artistas que, de uma maneira ou de outra, influenciaram a sua obra, rostos que habitam o seu peito e uma sombra projetada que os junta e os projeta no futuro.





Azeitão, junho 2019





Bibliografia

BAUDRILLARD, O Crime Perfeito, Lisboa, Relógio d’Água, 1996.
BECKETT, Samuel, Le Monde et Le Pantalon, Paris, Les Éditions de Minuit, 1989.
BENJAMIN, Walter, As Passagens de Paris, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, Assírio & Alvim, Lisboa, 2019.
DIDI-HUBERMAN, O que nós vemos, o que nos olha, Porto, Dafne Editora, 2011.
GREENBERG, Clement, Towards a Newer Laocoon [1940]. In The Collected Essays and Criticism. John O’Brian (ed.). Perceptions and Judgments, 1939-1944 (vol. 1). Chicago; London: The University of Chicago Press, 1988.
NANCY, Jean-Luc, Le Pois d’Une Pensée, L’approche, Strasbourg, La Phocide, 2008.
NANCY, Jean-Luc, Le Plaisir au dessin, Paris, Galilée, 2009.
VALÉRY, Paul, Piezas sobre arte, Madrid, Visor, 1999.


catálogo
 
1. Samuel Beckett, Le Monde et Le Pantalon, Paris, Les Éditions de Minuit, 1989.
2. Jean-Luc Nancy, Le Plaisir au dessin, Paris, Galilée, 2009, pág. 14.
3. Federico Zuccari, in AAVV, Jacqueline Lichtenstein (Dir.), A Pintura, Textos Essenciais, vol. III, A Ideia e as Partes da Pintura, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 42.

4. Georges Didi-Huberman, Devant L’Image, Paris, Les Éditions de Minuit, 1990, p.102.

5. Georges Didi-Huberman, op. cit., p. 102.

6. Jean-Luc Nancy, Le Pois d’Une Pensée, L’approche, Strasbourg, La Phocide, 2008.
7. Jean Baudrillard, O Crime Perfeito, Lisboa, Relógio d’Água, 1996, p. 73.
8. A propósito deste livro incontornável, uma breve referência para o lançamento da Assírio & Alvim, com a tradução e edição de João Barrento. Walter Benjamin, As Passagens de Paris, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, Assírio & Alvim, Lisboa, 2019. Um projeto ambicioso e inacabado que traça o quadro histórico, filosófico e social do século XIX.
9. Clement Greenberg, Towards a Newer Laocoon [1940]. In The Collected Essays and Criticism. John O’Brian (ed.), Perceptions and Judgments, 1939-1944 (vol. 1). Chicago; London: The University of Chicago Press, 1988, p. 29.
o
Voltar ao topo
o