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       Gesto primordial 
         
      Domingos Rego 
        
        
      O acto de desenhar é anterior à invenção da linguagem falada ou escrita;  corresponde, nessa medida, a uma experiência humana primordial. Essa acção  radica na vontade do desenhador transcender a condição do ser encerrado sobre  si, para, de um modo claro, participar na complexidade do mundo, interagir com  ele, fazer parte. Desenhar nasce dessa vontade, da noção de que há zonas da  existência que não se oferecem à nossa compreensão sem um esforço que vença a  inércia e que provoque o gesto e a marca. Henri Michaux, autor a que  voltaremos, insiste bastante nessa força que vence a inércia como origem do  gesto artístico. E é também de força, de energia, que trata a arte rupestre:  representando animais, figurando corpos em acção, lidando com a magia da  imagem, com o seu poder de evocar, exorcizar ou celebrar. É uma arte de  caçadores que captam a presa também pela imagem, que fazem uma arte original,  no sentido de estar na origem e radical, no sentido em que é raiz, lidando com  as forças que lhes escapam, mas que reclamam visibilidade.  
       
      No Paleolítico Superior estabelece-se um conjunto de referências visuais  que podem ser vistas como imagens arquetípicas de grandes questões a que o  Homem regressa incessantemente, procurando um sentido para a vida e para a  morte, sondando o seu lugar no cosmos, procurando o divino. Desenhar nasce,  pois, de uma ligação estreita com a realidade sensível, com o espanto e as  dúvidas que esta suscita, mas também com a necessidade de a transcender. Estes  desenhos vêm do desejo de fixar um acontecimento, mas são, paradoxalmente,  premonição e memória, futuro e passado a confluírem; brotam de uma fonte  anterior ao conhecimento e à consciência, surgem de uma falta que nunca será  preenchida, mas é essa a sua mais profunda razão para continuarem a existir e a  ressurgir sempre. Este ressurgimento das imagens convoca, naturalmente, Aby  Warburg e o Atlas Mnemosyne, na medida em que este estabelece um modelo novo de  temporalidade na história da arte, com tempos distintos a dialogarem, memórias  visuais a coexistirem e a criarem tensões entre si, perseguindo o sonho de  construir uma história da arte sem palavras. 
         
        Estas são marcas em permanente transformação, desvelam-se a céu aberto  no Côa, revelam-se ou ocultam-se nas cavernas de Lascaux. A matéria de que são  feitas reverbera com a luz rasante, expõe uma miríade de sulcos figurando um  animal, acolhe os pigmentos soprados sobre as mãos numa parede, no espaço  resguardado da gruta. De resto, estes desenhos estabelecem com o acidentado das  paredes uma comunhão de sentido, tiram partido das irregularidades, incorporam  os acidentes do suporte. São traços que vão ao encontro do essencial,  construídos com técnicas simples, tornando visível a pressão e a inscrição, o  sopro vital do desenhador que o torna participante de um mundo que não se  esgota ali, naquele indício da mão sobre a superfície áspera da rocha. São  desenhos que sugerem a dualidade presença/ausência que, como refere  Didi-Huberman em La ressemblance par contact, seestabelecem como  dados fenomenológicos, na medida em que resultam de um gesto de aderência pelo  contacto: “a mão traduz traços de individualidade e, em termos semióticos  permite a conivência entre o índex (contacto) e seu ícone (semelhança)” 1. Estamos perante sinais que  permitem uma arqueologia da imagem, um modo de fazer, um tempo inscrito que se  propaga a partir da experiência háptica que os gera. A dimensão física e táctil  destas imagens é essencial à sua formação, o gesto e o corpo participam  intimamente do seu nascimento, através do contacto directo a servir de matriz,  mas também pela energia necessária à definição dos sulcos e outras marcas  gráficas. As mãos representadas aparecem quase sempre como negativo, retiram-se  depois do ritual da pintura. Muito poucas vezes as mãos aparecem como positivo,  como carimbo do corpo a moldar a forma, como acontece nas Antropometrias de Yves Klein, no século XX. Em Klein, a acção e o ritual associados ao  nascimento das pinturas fazem parte da sua razão de ser, traduzem visualmente a  busca da energia vital que parece estar na base de toda a produção. Os vestígios  da vida de um corpo a mediar e a suscitar a imagem são o que une estas obras  tão distantes no tempo. 
         
        Robert Morris, nos anos 70, na longa série de desenhos intitulada Blind  Time Drawings, indaga as possibilidades da relação táctil com o suporte,  vendando os olhos enquanto desenha com as mãos impregnadas de grafite,  preservando o rasto do gesto a tactear o papel, pressionando mais ou menos,  produzindo vestígios de itinerários que depois descreve com palavras escritas  na própria página. Também aqui, o gesto e a marca precedem a palavra. 
         
        A genealogia do Desenho comporta este estar junto da natureza,  participando no seu devir. O antepassado pré-histórico que desenhou o veado em  Lascaux guia a mão de Pisanello, quando este volta ao mesmo tema e participa  naturalmente na (A) secreta vida das imagens, para usar a feliz síntese  do poeta Al Berto, contrariando a ideia fácil de uma evolução linear da arte,  no que esta traduz de crença numa maior qualidade, progresso, verdade, ou  capacidade de espelhar a realidade. O que acontece é de outra natureza,  prende-se com a possibilidade de alterar pontos de vista, de transportar para  os desenhos a experiência vivenciada em cada tempo, fazer o mesmo de outra  maneira. Baudelaire referia que “cada época tem a sua modernidade”, cada  artista, em períodos históricos diferentes, escava as possibilidades de sentido  e expressão que a vida lhe oferece. No entanto, as grandes questões  existenciais perpassam por todas as épocas, renovam-se ciclicamente, como se  renova a natureza, instituindo períodos de nascimento, crescimento e morte.  Antes, Vasari, no século XVI, já avançara com o conceito de modernidade,  estabelecendo a necessidade do artista imitar com invenção. 
       
      Pisanello abre caminho a essa atitude renascentista. Frequenta as cortes  italianas, retrata príncipes e princesas, recebe a herança gótica de um desenho  estilizado, linear. No entanto, a sua sensibilidade de desenhador aproxima-o da  natureza, provoca-lhe a curiosidade que será timbre do renascimento que se  anuncia, leva-o a desenhar toda a espécie de animais e plantas, captando cenas  de acção ou repouso, estudando estruturas e texturas, fixando pontos de vista  menos óbvios, como é patente no desenho que observamos: um veado visto de trás,  relaxado, com a cabeça erguida, colocado no lado esquerdo da página,  salvaguardando um espaço em volta, gerador de profundidade. 
         
        O papel surge na Europa, por volta de 1200. Este  acontecimento terá a máxima importância para o Renascimento e, como Avigdor  Arikha nos lembra, será decisivo no surgimento do desenho de observação que  desaparece durante cerca de mil anos, entre o declínio da arte romana e o proto  renascimento, para reaparecer com Pisanello. Se no caso da arte rupestre o acto  de desenhar nasce das sínteses da memória, da imaginação a iluminar o espaço  obscurecido da caverna, do contacto directo dos corpos sobre a superfície de  inscrição, Pisanello observa os seus temas, extrai da sua presença a razão e o  impulso para o registo naturalista e expressivo, fixa os movimentos  característicos, os detalhes e as singularidades de cada forma. Nessa atitude  distancia-se claramente do Homem primitivo. 
         
        Como observa Luquet, o Homem primitivo, tal como a criança, começa por  ter prazer no acto de desenhar, pintar ou manchar suportes, de se sentir a  fazer parte de algo que o ultrapassa. Não o move qualquer intuito figurativo, a  figuração vem depois, resulta da tentativa de conexão entre a marca e a ideia  de um objecto. O carácter esquemático destas representações deriva dessa  circunstância, da sua ligação ao conceito e não tanto à semelhança. Luquet designa  mesmo por “realismo intelectual” estas representações, distinguindo-as do “realismo  visual” das representações pictóricas e gráficas da história da arte do  ocidente. Como sabemos, esta posição recolheu bastantes objecções, nomeadamente  por parte de Bataille que contesta o prazer e a liberdade como estando na base  do impulso gráfico, contrapondo-lhe a noção de “alteração”, uma espécie de  impulso destrutivo do suporte. “Alteração” teria, portanto, a ver com mudança,  um impulso violento que na sua perspectiva habita tanto o profano como o  sagrado. Rosalind Krauss faz uma revisão detalhada destas posições em The  Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, relacionando  estas teses com a influência da arte primitiva em Giacometti, nomeadamente na obra  produzida em ligação com o grupo dissidente surrealista de Masson, Desnos,  Artaud, Queneau, Leiris e Bataille, grupo que orbitava em torno de Documents. 
         
        Muita da arte deste tempo interroga as razões mais profundas para o  gesto gráfico, para a inscrição sem plano prévio, para os dados do inconsciente  a trabalharem na sombra, indagando a razão de ser do itinerário de uma linha,  da energia do gesto gerador, como escreve Michaux: “Como eu, a linha procura  sem saber o que procura, recusa os achados imediatos, as soluções que se  oferecem, as primeiras tentações. Tomando cuidado para não chegar ao fim, é uma  linha de investigação cega.” 2 
         
        Michaux sinaliza a autonomia  da linha, a sua generosidade e desprendimento, o seu carácter, antes de ser  representação de um objecto, de uma paisagem, ou de uma figura. Procura captar  através do gesto, as formas e os movimentos invisíveis, revelando-os. 
         
        Nele existe a convicção de que é pelo desenho e pela pintura que o “primitivo  e o primordial melhor se redescobrem.” 3 Sabe que a linguagem verbal  tem demasiadas estruturas pré-definidas, o desenho impõe menos filtros, através  dele, é possível alcançar a essência das coisas, tocar os seus segredos,  segredos jamais revelados, mas descobertos pelo desenho. Sabia que esse milagre  tinha maiores possibilidades de acontecer quando se entregava, livre, sem  resistências, mergulhando no caos e na desordem, sem temor. 
         
        Nesse  sentido escreve: “Eu não decido. Retoques e correcções, jamais. Não tento fazer  isto ou aquilo, parto ao acaso para a folha de papel e não sei o que  acontecerá. Somente depois de uma série de quatro ou cinco desenhos, me  acontece descortinar um rosto. Há rostos no ar. De que género? Não faço a  mínima ideia.” 4 
         
        A convicção de participar num contínuo temporal, num “perpétuo  renascimento” 5, aproxima  Michaux de um outro autor que nos interessa  convocar nesta breve reflexão: Joseph Beuys. 
         
        É conhecida a relevância do  desenho no percurso artístico deste autor, mesmo quando, em determinadas fases,  a política ou o carácter antropológico do gesto artístico parecem ser  determinantes. Essa importância leva-o a referir a propósito  dos seus primeiros desenhos, o seguinte:  
         
      Esta série de desenhos representa a pesquisa inicial guiada pela vontade  de falar da anthropos, do humano, tal como ela vive espiritualmente no  seio das diferentes culturas. Possivelmente, numa primeira vida, realizei  pinturas rupestres, e encontro-me hoje vítima de uma civilização que me  bombardeia com as questões mais elementares, proclamando hipocritamente grandes  preocupações com a dignidade do Homem, da natureza, do animal no coração da  existência afectiva. É esta primeira aproximação afectiva ao que o nosso mundo  destruiu, matou, que marca o começo de uma teoria plástica… É um começo lógico.  De início forma-se um mundo repleto de imagens, depois, pouco a pouco, surgem  os conceitos. 6       O Desenho é entendido como fio condutor entre  as diferentes páticas artísticas e entre a arte e a vida, representando um  fazer que incorpora a matéria, o gesto, a energia e a imaginação. Desde as  primeiras obras em que se confronta com os mestres, Pisanello, Leonardo ou  Rembrandt, o que parece determinar a marca gráfica é a energia e a  espontaneidade subjacentes ao acto de desenhar. 
       
       
       
      Não pode deixar de se considerar, também, a dimensão quase alquímica que  investe de sentido a substância destes desenhos; Interessam-lhe os pigmentos, a  aguarela, a gordura, os óxidos, mas também a colagem de objectos, a utilização  de suportes com história, com reminiscências de outras funções: uma página de  jornal, um envelope, etc. 
       
      
      O eco dos desenhos primitivos parece voltar nestas páginas, captando as  forças a que urge dar uma forma. Beuys falava de “consciência imaginativa”, da  necessidade de “conciliar a acção de forças” e tal como na arte rupestre, a  preocupação com a figuração, ou o lado descritivo do desenho não são prioritários.  Perseguindo um desejo de totalidade, Beuys aproximou a vida e a arte,  acreditando que em cada Homem há um artista.  
         
        Ao voltar ao passado, mais ou menos remoto, o artista alemão demonstra  acreditar que o tempo flui através das imagens e da matéria, ou como refere  Heiner Bastiani acredita “convocar a memória como corrente temporal, como  arqueologia do abismo” 7. 
         
        Em toda a sua obra, o corpo representa o lugar da acção, a instância de  contacto com as forças mais subtis, onde a experiência resgata o inconsciente,  acreditando aceder a zonas que a razão desconhece. Importa compreender estes  desenhos como passos em direcção a uma totalidade da qual o Homem não se pode  apartar. Como assinala Heiner Bastian, “os seus desenhos são a língua sibilina  de uma natureza redescoberta. O que eles encerram transporta o signo do  espiritual.” 8 
         
        Do que ficou referido, ressaltam os atributos do Desenho para sondar as  zonas mais secretas da existência e, na simplicidade dos seus processos,  constituir uma eterna busca do essencial. Nessa medida, é intemporal. Embora os  desenhos se inscrevam no fluir temporal, a sua natureza não é remissível para  uma lógica estritamente cronológica, como nos lembra Henri Focillon, na  A Vida das Formas: “Por um lado, a  obra de arte é intemporal, sendo o espaço o campo onde se manifesta  prioritariamente a sua existência e a sua problemática. Por outro lado, a obra  de arte está colocada numa sucessão, entre outras obras. A sua criação não é  instantânea, ela é o resultado de uma série de experiências. Para se falar da  vida das formas tem de se evocar necessariamente a ideia de sucessão” 9 
         
        Continuidade, sucessão, renovação são palavras associadas à memória, à  consciência de pertença a algo que nos ultrapassa, nos precede e nos  sobreviverá. A arte toca esses regiões, permite-nos aceder ao menos  compreensível, ao mais obscuro, quer se trate do interior de uma caverna ou de  uma verdade por revelar. É a profundidade da vida expressa na superfície de um  suporte, uma memória inscrita no tempo e ligada pelo gesto primordial do  desenho. Cada novo desenho traz uma promessa de renovação, um perpétuo renascer  que nos lembra a célebre frase de Thoreau: “cada criança que nasce recomeça o  mundo” 10 
         
         
         
         
       
      Bibliografia 
          
      AAVV, Os Múltiplos Beuys, Joseph Beuys na colecção  Paola Colacurcio, Belo-Horizonte, Museu de Arte da Pampulha, 2000. 
        AAVV, Joseph Beuys, Dessins, Berlim, Heiner  Bastian, 1983. 
        AAVV, Joseph Beuys, Les premiers dessins, Munique/  Paris, Schrimer / Mosel, 1992. 
        Al Berto, O medo, Lisboa, Assírio & Alvim,  1997. 
        ARIKHA, Avigdor, Peinture et regard, Écrits sur l’art, Paris, Hermann Éditeurs, 2011. 
        BAUDELAIRE, Charles, O pintor da vida moderna,  Lisboa, 2004. 
        DIDI-HUBERMAN,  Georges, La resemblance par contact. Archéologie, anachronisme et modernité  de L’empreinte, Paris Éditions de Minuit, 2008. 
        FOCILLON, Henri, A Vida das Formas, Lisboa, Edições 70, 1988. 
        KRAUSS, Rosalind  E., La originalidad de la vanguardia y outros mitos modernos, Madrid,  Alianza Editorial, 2002. 
        MICHAUX, Henri, Emergences  – Résurgences, Genebra,  Albert Skira  Éditeur, 1972. 
      ROSENBERG, Jakob, Great  Draughtsmen from Pisanello to Picasso, Cambridge, Harvard University Press,  1959. 
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           As idades do desenho 
        Ciclo de conferências 
        FBAUL, 2013 
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