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Manet: o revolucionário tranquilo
Domingos Rego
Manet e o espaço físico da tela
Numa série de conferências produzidas entre 1967 e 1971, em Milão, Tóquio, Florença e Tunis, intituladas La peinture de Manet, Michel Foucault aborda a obra do pintor francês, defendendo que este compunha as suas pinturas jogando com as propriedades materiais do espaço que representava. Genericamente, até aqui a preocupação dos pintores era sugerir profundidade. Essa conquista dos mestres do quattrocento tinha dominado gerações sucessivas de artistas, de tal modo que o próprio suporte pictórico havia sido esquecido; o que se tratava era de iludir o olhar e projetar o espectador para a cena tratada. Foucault identifica estratégias de ocupação da tela, por parte de Manet, que corroboram a tese. Por exemplo, em La musique aux tuileries (1862), é salientada a importância das verticais definidas pelas árvores e a horizontal marcada pelas cabeças das personagens representadas. Este jogo com a geometria interna do quadro é ensaiado noutras obras, como em Le bal masqué (1873-74), em que o autor anula a profundidade através da aglomeração de personagens em primeiro plano, projetando-as para a superfície e reforçando as verticais e horizontais através dos elementos arquitetónicos que pontuam o espaço. Também em L’exécution de Maximilien (1868-69), as propriedades espaciais do retângulo são exaltadas, através da introdução do muro, a materialização por excelência do limite, do fecho do espaço, repondo o retângulo da pintura no seu interior. Foucault persegue os esquemas de anulação da profundidade abordando o quadro Dans la serre (1879), onde este processo resulta da inclusão de elementos vegetais. Para além deste facto, verifica-se um reforço das verticais e das horizontais através da geometria do banco. O autor observa, ainda, a particularidade de as medianas do quadro serem enfatizadas através da posição e da direção das mãos das personagens representadas.
Em Le chemin de fer (1872-73), para além da inclusão, mais uma vez, das verticais e horizontais, usando a guarda metálica para essa alusão, a anulação da profundidade é obtida pela representação do vapor do comboio. Manet empreende nesta obra a exploração da noção de frente e verso do quadro, usando a direção dos olhares das duas personagens para nos confrontar, olhos nos olhos, com uma das personagens, e tornando-nos cúmplices do olhar da criança que é representada de costas. A referência ao retângulo da tela ocorre em inúmeros exemplos, mas Foucault assinala Le balcon (1868-69), onde a referência é literal, adotando uma lógica de mise-en-âbime.
Por último, será útil determo-nos na observação de Le fifre (1866), onde estas questões são exacerbadas. Neste caso, o espaço é dissipado e a personagem colocada num vazio sem qualquer referência que nos permita identificar e caracterizar o espaço. A pequena sombra que sugere o volume resulta duma iluminação frontal, o que concorre para a planificação das formas. Este aspeto terá a maior importância na análise de Le déjeuner sur l’herbe.
Le Déjeuner sur L’Herbe
Em Manet’s modernism or, the face of painting in the 1860s, Michael Fried apresenta-nos um amplo estudo sobre a obra de Manet, relacionando-a com a pintura que a precedeu e com os autores da sua geração, que designou por geração de 1863. Nesta, destacavam-se autores tão diferentes como Alphonse Legros, James Whistler, Fantin-Latour, para além do próprio Manet. Todos estes autores desenvolveram aspetos no seu trabalho pictórico que inicialmente foram considerados excessivos mas que, posteriormente, foram integrados como valores artísticos.
Michael Fried acredita que, apesar da vasta informação existente sobre a vida e obra de Manet, continua a ser possível apontar novas leituras, desvendar dados novos e analisar influências que a sua obra teve nas gerações seguintes, até hoje. Em relação aos autores franceses do passado, em cuja linhagem seria possível inscrever Manet, Fried assinala Chardin, Greuze, Millet e Courbet e cita Matisse para evidenciar a atitude nova que a sua pintura encarna: “Manet é o primeiro pintor que traduz diretamente as suas sensações, libertando o seu instinto. É o primeiro a dar mais importância à expressão e deste modo simplifica o métier do pintor.” 1
Na comunidade intelectual e artística de Paris da segunda metade do séc. XIX existia uma forte corrente contrária à ideia de recriar a arte antiga; Baudelaire, Thoré ou Zola inscreviam-se neste grupo. Manet adota uma posição diferente, valoriza a pintura do passado, o que é possível perceber através das múltiplas fontes que servem de base às suas pinturas, adotando uma atitude moderna através dos temas e da maneira de pintar. Nesse sentido empreende uma revolução tranquila como queremos significar com o título deste trabalho.
O autor revê o pensamento de Greenberg, assinalando o processo de profunda autocrítica que ocorre nas diferentes artes, cujo objetivo consiste na identificação do campo irredutível de cada uma. Este processo terá acontecido pela constatação da progressiva perda de uma missão específica para cada disciplina artística, correndo o risco de se tornar puro entretenimento. Cabia, assim, à arte demonstrar as suas especificidades em relação às outras esferas do saber e de intervenção social. É neste panorama que entra o conceito de pureza de cada arte. O modernismo terá usado a arte para chamar a atenção para arte no início da “sociedade do espetáculo”, que projetava o entretenimento, o ócio e a moda.
Michael Fried propõe a tese de que Le déjeuner sur l’herbe pode ser visto como uma tentativa de combinar virtualmente todos os géneros numa única composição. Além disso, os pintores desta época terão empreendido um diálogo criativo com os novos dispositivos da visualidade, nomeadamente a fotografia, o instantâneo, as gravuras japonesas, a pintura inacabada e as relações vivenciais entre o pintor e o modelo. Nesse processo estabeleceram uma progressiva simplificação do processo de trabalho e também das formas apresentadas, determinando uma primeira aproximação à noção de impressão e aos mecanismos de ilusão ótica, desenvolvidos subsequentemente pelos impressionistas. A este propósito Michael Fried avança com a noção de “realismo ocular”. Consideremos esta obra paradigmática de 1863. O quadro foi apresentado pela primeira vez em 1863, no Salon des Refusés em Paris 2.
O Salon era a exposição mais importante realizada em França, organizada pela Academia mas com a projeção própria das iniciativas do Estado, que era, de resto, quem a financiava e quem adquiria a maioria das obras que aí eram vendidas. O Salon era o espaço de projeção da fama e da reputação dos artistas. A obra de Manet que aqui nos ocupa quebra um conjunto de regras académicas. É verdade que muitos dos princípios académicos tinham, em alturas diferentes, sido questionados, nomeadamente por artistas como Géricault, em A Jangada da Medusa (1819) ou Delacroix, em A Liberdade Guiando o Povo (1831), gerando fortes polémicas políticas no caso destes autores 3.
O primeiro fator que provoca polémica, no caso do quadro de Manet, prende-se com a crueza da cena tratada. Manet não se socorre de quaisquer pretextos mitológicos, ou outros, para compor o seu quadro. O que nos é mostrado é um grupo de jovens, que inclui duas personagens masculinas vestidas e duas personagens femininas, sendo que uma delas está nua e a outra, num plano mais recuado, sai da água com um vestido leve.
Aparentemente, o grupo recreia-se, no campo, à beira-rio, nos arredores de Paris, provavelmente na zona de Argenteuil, local que se tinha tornado num destino muito procurado para o gozo dos momentos de ócio dos parisienses. Dito deste modo, nada faria supor as polémicas que o quadro originou. Com efeito, o que o público considerou foi que o quadro era imoral, não pelo que nele estava representado, mas pelo que se subentendia da cena. A nudez feminina era aceitável, como já vimos, se estivesse relacionada com uma cena mitológica que a justificasse. Retirando-lhe essa dimensão alegórica, o que o público reconhecia era uma cena de prazer carnal que não podia suportar. O próprio título do quadro, Le déjeuner sur l’herbe, entrava neste jogo de descodificação. Qual era, afinal, o almoço? Seria um inocente piquenique no campo, ou uma cena de sexo que se preparava? Mas a estranheza não resultava só dessas consequências narrativas implicadas na leitura do quadro. O que o espectador comum não descortinava era o propósito daquela composição. As personagens não lhe davam nenhuma chave de leitura que lhe permitisse descodificar a ação. Os olhares das várias figuras não se cruzam, nenhum enredo é determinado; uma interpela o espectador, tornando-o cúmplice da cena: é o caso da jovem nua que nos olha, num misto de provocação e sedução e as outras ignoram-nos ou ignoram-se entre si. Esta incoerência de atitudes e de gestos acentua a impossibilidade de um leitura narrativa que justificasse uma tão grandiosa composição 4.
Sabemos da importância que autores do passado, como Velázquez, Goya ou Ticiano tiveram para Manet, como se constituíram em referências que o guiaram em todo o seu percurso de pintor. Essa admiração traduziu-se, muitas vezes, na adoção da citação como forma de estabelecer diálogos profícuos com esses pintores. Este facto pode sugerir uma contradição gritante por parte de um autor que abraçava a modernidade com toda a convicção. Não será o caso. Ao situar as suas obras no plano da reflexão sobre a própria história da pintura, Manet reforçou o sentido pictórico, autónomo, da sua pintura, uma pintura que encontra na linguagem das cores e das formas o esteio da sua construção.
No caso de Le déjeuner, a primeira citação que é possível detetar, não é direta. Ao evocar Le Concert champêtre (c.1510-1511), à época atribuído a Giorgione, mas que hoje se atribui a Ticiano, Manet não toma a composição específica do quadro, antes cita um género que, de resto, esse quadro inaugurara, e que deu origem a inúmeros quadros, conhecidos justamente como festas campestres, a propósito da obra fundadora 5.
O jogo, quase de “boneca russa”, que resulta do estudo desta obra, significa que ela não se circunscreve sobre si própria, sendo pretexto para o estabelecimento de ligações com o passado, mas também com o futuro, como veremos a propósito da obra de Jeff Wall. A questão dos géneros em pintura não é só convocada pela evocação do quadro de Ticiano, e pela alusão a uma “fête champêtre”. Toda a composição é pensada pela agregação de diversos géneros e subgéneros temáticos: a paisagem, o retrato, o retrato de grupo, o nu feminino, a natureza-morta. O que resulta é um sistema em que cada género desmente a eficácia temática dos restantes.
Em primeiro plano surge uma natureza-morta, composta por roupas desalinhadas, frutas, um chapéu e um cesto, pintados com a segurança e a definição que Manet admirava nos “bodegóns” de Velázquez. É sabido o nível extraordinário que as naturezas-mortas atingiram na obra do pintor, que não resistia a inclui-las nas suas pinturas mais importantes. Depois, há o trabalho das figuras, do nu solidamente recortado e o cuidado posto na caracterização das roupas, dos jovens estudantes de arte que marcam a composição. Podemos falar de retrato pela natureza realista da pintura, e pelo tipo de relação que Manet tinha com os seus modelos, que eram pessoas dos seus círculos familiares e de amizade. A modelo que posa nua é, de resto, Victorine Meurent, amante do pintor e a modelo que com ele trabalhou em Olympia, entre outras pinturas.
Corpos e objetos são estruturados solidamente, representados em contraste com a pincelada livre, solta e sugestiva, dos elementos vegetais e da água que definem a paisagem. Com efeito, todo o quadro se organiza em torno de contrastes: a leveza e a transparência do tratamento do fundo contrastam com a solidez dos corpos; o despido e o vestido; a definição dos recortes precisos das figuras e dos objetos opõem-se ao caráter meramente sugerido da vegetação. Esses recortes resultam, em grande medida, da iluminação frontal adotada. Também as escalas de representação devem ser analisadas, uma vez que, ao adotar o grande formato, o pintor conseguiu representar os corpos à escala natural, incluindo uma diversidade de elementos de diferentes dimensões, que vão das grandes árvores aos pequenos cogumelos ou ao pequeno pássaro, que funciona como fecho superior da cena central.
Michael Fried analisa dois pormenores do quadro que frequentemente passam despercebidos, este pássaro representado por Manet no centro superior da composição, um pisco e, em baixo, à esquerda, um sapo. Ambos os animais simbolizam a velocidade. No caso do pisco assinala a velocidade da visão capaz de imobilizar o voo do pássaro no ar. Em relação ao sapo, o autor destaca o apontamento rápido e as marcas visíveis do pincel para destacar as relações entre a visão e a manualidade.
A liberdade nos processos técnicos adotados, foi outro dos aspetos perturbadores para o público e para a crítica, habituados a considerar boa pintura aquela que assegurasse um acabamento perfeito, sem marcas visíveis das pinceladas. Aqui, era, justamente, o contrário que acontecia. Ao adotar estes procedimentos técnicos, Manet enfatizava os materiais constituintes da própria pintura: tintas e tela. Não se tratava de criar a ilusão de uma materialidade fora das esferas da própria pintura, mas de assumir as suas limitações e potencialidades. O que se evidencia, deste modo, é a natureza plástica da superfície pictórica, afirmando a artificialidade e a autonomia da pintura em relação à literatura, ou a outras artes. Este aspeto do ilusionismo, ou da artificialidade assumida pela pintura, foi tratado por Greenberg, no seu texto de 1940, Towards a Newer Laocoon, referindo a posição de Manet, nos seguintes termos:
Entretanto, Manet, próximo de Courbet, enfrentava a questão do tema no seu próprio terreno, ao inclui-lo nas suas pinturas para, de seguida, o anular. A sua insolente indiferença em relação ao tema, que, por si, era muitas vezes sedutor, e o seu processo de trabalhar as cores planas eram tão revolucionários como o era a técnica impressionista de pintar. Tal como os Impressionistas, ele viu os problemas que se punham à pintura, fundamentalmente como uma questão de médium, e chamou a atenção dos espectadores para esse facto. 6
Este será um dos traços reveladores da modernidade que esta pintura anuncia 7. Os aspetos inovadores da técnica de Manet foram, ao mesmo tempo, um dos fatores mais criticados, na altura. Assinalava-se o facto dos seus quadros, e Le déjeuner em particular, não serem mais do que esboços apresentados como pinturas finais. Outro aspeto recorrente nessas críticas prendia-se com o recurso à citação, uma vez que esta era vista como cópia e como expediente formal sem ter em consideração os sentidos e significados. Em tudo isto os críticos viam uma incapacidade de Manet para realizar composições coerentes, de acordo com os princípios académicos.
Nesse sentido se manifestou o crítico simbolista Joseph Péladan, num artigo publicado no L’Artiste em Fevereiro de 1884: “Manet não é mais do que sofrível pintor, e um pintor de fragmentos – sem ideias, sem imaginação, sem emoção, sem poesia e sem força de execução. É incapaz de compor um quadro (…) A única pessoa que pode julgá-lo e percebê-lo é alguém que saiba de técnica.” 8 É de assinalar que, também aqui, os aspetos criticados são os mais inovadores da pintura de Manet, nomeadamente, a questão dos fragmentos que consubstanciam muito do olhar da modernidade.
A juntar todos estes aspetos plásticos, somava-se a imoralidade que se atribuía ao quadro, e que como vimos, originou um escândalo sem precedentes em Paris.
Mas nem todos estavam de acordo com estes posicionamentos. Desde logo Baudelaire via na pintura de Manet a encarnação da modernidade que defendia, mas também Zola defendeu a sua obra com toda a convicção reconhecendo-lhe, antes de tempo, a genialidade que a história confirmou. Estes autores viam, nas supostas fraquezas desta pintura, uma força, uma capacidade de espelhar as contradições da modernidade, entrando em rutura com os hábitos e as convenções do passado.
Le déjeuner sur l´herbe será mesmo o ponto de partida para o célebre livro de Émile Zola, L’Oeuvre.
Em 1866, no quarto artigo de Mon Salon, Zola tomara o partido de Manet, vendo nele um dos “mestres do futuro”. Esse artigo será desenvolvido no ano seguinte num texto, justamente, com esse título: Manet em 1867: Um Pintor de Futuro. Aí, escreve:
Le déjeuner sur l’herbe, como deve ser julgado, é uma verdadeira obra de arte; ela foi vista, somente, como a representação de um grupo de jovens, que comem sobre a relva, depois de um banho no rio, entendendo que o artista teve intenções obscenas e provocadoras na conceção do quadro, uma vez que o artista perseguiu contrastes vivos e massas bem definidas. Os pintores, sobretudo Édouard Manet, que é um pintor atento, não têm essa preocupação do tema que inquieta o grande público, mais que tudo; o tema para eles é um pretexto para pintar, sendo que para o público só o tema existe. 9
Zola prossegue analisando, com a independência que o caracteriza, não só este quadro, como uma série de outras obras, concluindo que pela juventude de Manet, e pelo muito que se espera da sua arte, ele não ousa confiná-lo ao presente, reconhecendo-o como um pintor de futuro.
Ao usar a citação, de pinturas anteriores e de géneros, ao assumir o aspeto inacabado e a incoerência narrativa, ao tratar uma cena de ócio protagonizada por pessoas comuns, em Le déjeuner sur l’herbe, Manet logrou pôr em debate aspetos que se viriam a revelar centrais na definição do programa da modernidade. Daqui decorre uma progressiva autonomia dos elementos plásticos da pintura: luz, forma e cor. Autonomia que conduzirá ao programa estético do impressionismo, no caso da luz, do cubismo, em relação à forma e ao fauvismo no que respeita à cor.
Picasso fará no final da vida diversas séries onde se confronta com os mestres que o guiaram ao longo da vida. Manet será um dos autores tratados, partindo de Le déjeuner sur l’herbe, explorando a velocidade e a energia da execução, desconstruindo os vários elementos da composição, jogando com a ironia e expondo ostensivamente as marcas dos pincéis sobre uma tela praticamente sem tratamento.
Manet comentado por Jeff Wall
É sabida a importância que tem a reflexão crítica sobre arte do passado na produção do artista canadiano Jeff Wall. Com efeito, muitas das composições que nos apresenta constituem uma desconstrução formal e temática de pinturas clássicas. Essa reflexão sobre pintura, a partir de uma prática de fotografia encenada, é um eixo central do seu trabalho. Se em Manet, as características físicas da pintura são um dos pressupostos iniciais, como vimos nos vários exemplos comentados, em Jeff Wall as características físicas da fotografia são um elemento insofismável. Aqui, é possível compreender, através da utilização de caixas luminosas, o protagonismo da luz como elemento intrínseco ao processo fotográfico. O resultado é uma cor iluminada e transparente. Digamos que o artista explora os dispositivos da fotografia publicitária, captando a atenção do espectador. Este aspecto revela ironia, presente nalguma arte deste período, mas também contribui para salientar as qualidades plásticas destas imagens.
Esta estratégia de sedução tem muito a ver com o que Thierry de Duve designa por “quadros fotográficos”, obras fotográficas que, através do grande formato, se equiparam aos quadros de museu e, genericamente, a grandes obras da arte antiga. O grande formato é, pois, entendido como elemento plástico da maior importância na ligação com a pintura. A obra que aqui nos ocupa, funciona como paráfrase da pintura de Manet, como comentário capaz de lhe definir novas possibilidades. Desde logo, a questão da encenação, presente na pintura, adquire uma nova leitura através da fotografia, na medida que a ambiguidade entre o que é real e o que é encenado é maior. A fotografia de Wall distancia-se da captação direta, “straight”, da fotografia de reportagem, para assumir a teatralidade, a criação de uma ilusão, esbatendo os limites entre o que é real e o que é simulado.
A cena tratada refere-se aos pequenos gestos do quotidiano. Também aí a herança de Manet se manifesta, por contraponto aos gestos dramáticos e eloquentes da arte antiga. O grande formato joga um papel expressivo, conferindo monumentalidade aos pequenos gestos, estabelecendo uma distância estratégica em relação ao observador.
Jeff Wall, em Storyteller, parte de Le déjeuner sur l’herbe de Manet para equacionar o lugar do indivíduo na sociedade contemporânea. A cena que Manet idealizou é subvertida, a periferia da cidade, outrora associada à natureza é invadida por um viaduto que domina a cena. Como Thierry de Duve assinala 10, tudo é transfigurado numa lógica dialética, dando-nos pequenas pistas que remetem para o quadro de Manet mas subvertendo a lógica compositiva da sua obra. O gesto da figura feminina despida, apoiando o cotovelo no joelho, do quadro de Manet, é adotado por um homem vestido, o grupo é deslocado para o lado esquerdo da composição e orienta-se na direção simétrica à do quadro de Manet, ocupando o lugar dos objetos desse quadro.
Escreve Thierry de Duve: “É como diz o artista [Jeff Wall], uma “imagem especulativa em que o próprio aparato pode ser concebido como se todavia não tivesse emergido dos mundos mineral e vegetal’. E eu acrescentaria que é o emblema de uma relação perdida com a natureza, a mesma, sem dúvida, que expressam os mitos de Haida, Kwakliut ou Tlingit que talvez a jovem narradora esteja a transmitir aos seus companheiros atentos, a mesma que também expressa na língua moderna de Baudelaire a palavra belo”. 11 Jeff Wall tem em conta as transformações da cidade, inclui o dinamismo dos fenómenos e da história, mostrando-se sensível às suas contradições.
A atitude crítica detetável na obra de Wall inscreve-se no contexto da arte conceptual dos finais dos anos 60 e 70. É aí que a sua formação se dá, e dela decorre uma maior exigência para com o espectador, uma participação ativa na fruição da obra: determinando relações com a história da arte, contando com os conhecimentos do público, recusando hábitos percetivos passivos.
Num texto intitulado Unity and fragmentation in Manet 12, publicado pela primeira vez em 1984, Jeff Wall aborda a questão da fragmentação do espaço e a anulação do protagonismo da perspetiva tradicional, para além de salientar a forma como Manet trata os aspectos da vida moderna de forma monumental. Nesse mesmo texto, a falta de unidade e comunicação dos personagens do quadro de Manet, é abordada como referência à alienação e ao vazio gerado pela sociedade capitalista, promovendo uma cultura destituída de transcendência.
Para concluir, assinalemos a importância atribuída por Wall aos meios técnicos geradores de imagens, inscrevendo a fotografia nessa história longa de construtores de imagens, que é também a da pintura. Nessa medida, atribui a maior importância aos materiais e às substâncias necessárias à revelação das imagens, e a esse propósito publica em 1989 um texto com o título Fotografia e inteligência líquida 13 onde põe em evidência as transformações verificadas nos sistemas de produção de imagens tradicionais, que se vão progressivamente afastando da natureza, alterando-se as suas características, como acontece atualmente com as fotografias digitais. Wall assinala a mudança, sem que isso signifique um juízo crítico, adotando, inclusivamente, os novos processos técnicos. |
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Com ou sem tintas: composição, ainda?
Conferências dos doutoramentos,
Área de Pintura
FBAUL, 2013
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