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Tocar com os olhos

Domingos Rego

 

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Texto de apresentação da exposição Stardust, de Nuno Gil,
na Galeria Módulo, Lisboa, 2018.

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Uma célebre monotipia com aguarela de Paul Klee, intitulada Angelus Novus, de 1920, foi adquirida por Walter Benjamin, um ano depois. O que terá fascinado Benjamin foram as direções contraditórias inscritas na composição 1, o eterno movimento entre passado e futuro, um anjo que parece reunir pedaços da memória para poder avançar. Os trabalhos de Nuno Gil retomam esse desígnio a partir de fragmentos de papel, um imenso puzzle que no final nos devolve a imagem de Janus. 2

Klee, no início do Credo do Criador, proclama a conhecida frase: “A arte não reproduz o visível, mas torna visível” 3, e muita da pesquisa modernista assenta neste pressuposto, gestos e ações imprevistas que nos permitem aceder a outros, e mais profundos, planos da realidade, ou, como afirma Merleau-Ponty: “Isto quer finalmente dizer que o que é próprio do visível é ter uma dobragem de invisível em sentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência.” 4 Tanto Klee como Merleau-Ponty estavam interessados nas relações enigmáticas entre a criação e certas forças que a transcendem. Cortar, retalhar, escavar, coser, agrafar, perfurar, derramar, rasgar, são ações que associamos aos trabalhos aqui expostos, que colocamos numa genealogia que nos convoca Paul Klee, Henri Matisse, Hans Arp, Max Ernst, Lucio Fontana, Louise Bourgeois, Frank Auerbach, e tantos outros. O que Nuno Gil nos propõe é uma aproximação à matéria, às rugosidades, aos acidentes, às topografias que se vão ajustando às imagens emergentes, numa lenta revelação que resulta do somatório dessas ações e nos permitem, enquanto espetadores, tocá-las com os olhos. Para o senso comum, muitas destas intervenções têm uma conotação destrutiva e, no entanto, é através delas que os desenhos se organizam, ganham visibilidade e sentido. A dimensão háptica que estas obras encerram contraria a vocação virtual e desmaterializada de muitas das nossas experiências atuais, e, nessa medida, despertam não só o tato como contrariam o adormecimento geral dos sentidos. Bachelard falava de “polifonia dos sentidos” 5, a propósito do modo como o corpo participa na experiência estética, e essa noção é cada vez mais importante, como antídoto para o empobrecimento das experiências privadas do contacto direto com as coisas.

Há nestas composições a eleição da verticalidade como direção estruturante, inscrevendo formas vegetalistas que ligam, na tradição simbólica da pintura, a terra ao céu, é a arvore como Axis mundi, propondo um desenvolvimento em ramificação. Esta opção compositiva remete, inevitavelmente, para o rizoma de Deleuze e Guattari 6, no que este significa de estrutura epistemológica que comporta o crescimento em várias direções, podendo ser raiz, haste ou ramo, sem a primazia de qualquer elemento. Partindo da botânica, o que os autores visavam era um modelo capaz de adotar diversas direções, todas elas importantes na teoria do conhecimento humano. Nas obras que Nuno Gil nos oferece as estruturas rizomáticas traduzem-se num tratamento aprofundado da micro e da macro escala, capazes de nos sugerirem a projeção de plantas e árvores no espaço, ou, noutras composições, um corte no subsolo e um mergulho nas raízes.





Azeitão, 15/10/2018


folha de sala
 
1. “Uma pintura de Klee chamada "Angelus Novus" mostra um anjo parecendo prestes a se afastar de algo que ele está contemplando fixamente.  Seus olhos estão fixos, sua boca está aberta, suas asas estão abertas.  É assim que retrata o anjo da história.  Seu rosto está virado para o passado.  Onde percebemos uma cadeia de eventos, ele vê uma única catástrofe que continua acumulando destroços e arremessando-a na frente de seus pés.  O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos e fazer tudo o que foi destruído.  Mas uma tempestade está soprando do Paraíso;  Ele ficou preso em suas asas com tanta violência que o anjo não pode mais fechá-las.  A tempestade o impulsiona irresistivelmente para o futuro, para o qual ele está de costas, enquanto a pilha de destroços diante dele cresce para o céu.  Essa tempestade é o que chamamos de progresso.”, Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História, IX, ou Teses sobre a Filosofia da História, fonte: https://www.sfu.ca/ ~andrewf/ CONCEPT2.html.
2. Deus dos Romanos representado com duas faces que aludem ao passado e ao futuro.

3. Paul Klee, Théorie de l’art moderne, Paris, Folio, 2008, p. 34.

4. Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, Lisboa, Vega, 2013, p. 67.
5. Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 6.

5. Rizoma é um conceito proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari e desenvolvido na introdução ao livro Mil Platôs (Capitalismo e Esquizofrenia), vol. I, São Paulo, Edições 34, 1995.
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