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Saber desenhar uma flor
Domingos Rego
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Sinopse: Nesta comunicação proponho uma reflexão sobre a forma como o desenho participa no desenvolvimento pessoal e cognitivo dos indivíduos, e sobre a importância que o estudo e a sistematização de conhecimentos nesta área adquire na evolução das capacidades criativas dos estudantes de arte.
Palavras-chave: desenho, gesto, conhecimento, criatividade
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Desenhar resulta de um impulso natural e de uma necessidade interior. Nesse sentido não requer grande aprendizagem, mas para aceder a planos de expressão e domínio cultural do desenho, todo o estudo e treino são necessários. Desenhar implica o fazer, daí que qualquer evolução nesta disciplina implique o exercício, a repetição, a tentativa e o erro. Sem abarcar estes aspectos, qualquer aproximação às qualidades formadoras do desenho se revela impossível. Estamos num domínio em que, a par da natureza sensível dos materiais e dos gestos, a capacidade de abstracção é solicitada no sentido de promover equivalentes gráficos para as formas vistas, interpretando-as.
Desenhar é uma actividade importante para o desenvolvimento pessoal e cognitivo porque põe em jogo facetas muito variadas da nossa relação com o que nos rodeia. É um treino do ver e do fazer que acrescenta intensidade ao olhar que interroga e se relaciona com o mundo. Goethe a este propósito referia que “olhar é inútil sem ver”, estabelecendo nesta gradação patamares de atenção e concentração que vão do olhar distraído ao ver que quer compreender, como acontece no desenho. Mas desenhar é, também, uma forma de coordenar a visão, os outros sentidos, gestos e pensamentos, ou de um modo menos controlado, de expressar o que conscientemente não se consegue entender, como defendem as correntes psicanalíticas. Vejam-se a este propósito os desenhos das crianças, repletos de dúvidas, medos e encantamentos.
Os primeiros riscos ensaiados pelas crianças não visam representar objectos ou ideias, antes correspondem a uma tomada de consciência do movimento do corpo, aquilo que os especialistas referem como uma fase motora (2-4 anos), que engloba também a exploração do prazer lúdico e sensorial de riscar os suportes. 1 A passagem da fase das garatujas para a fase seguinte, já com alguma coordenação entre o movimento e a visão, normalmente referenciada como fase perceptiva, ou pré esquemática (4-7 anos), acontece com a inclusão de formas que fazem lembrar o real, através de uma forte simplificação, a que se seguirá uma fase de representação, ou esquemática (a partir dos 7 anos), caracterizada por grafismos mais diferenciados, quer em registos figurativos, como não figurativos, e com uma maior complexidade.
Como observa Arnheim, as crianças (tal como os artistas) vêem muito mais do que desenham. O propósito não é o “realismo fotográfico”, mas a eficácia gratificante de um registo gráfico que traduz o essencial.
É importante assinalar que mesmo em idades precoces (4-5 anos), a criança começa a desenhar o que vê, a fazer representações dos pais, dos amigos, das casas, das flores, dos carros, etc. Mas será mais tarde, por volta dos 10, 12 anos, com embate com a noção de representação e com a fidelidade ao real que começam os “problemas” do desenho e do saber desenhar. É como se o mundo regrado que circunda a criança fosse aos poucos impondo as suas leis e estabelecesse limites para as divagações imaginativas das crianças, para as garatujas expressivas e urgentes, para as manchas de cor, os sinais e as linhas vindos de territórios insondáveis. Aristóteles assinalou esta propensão para a representação reconhecível como estando ligada ao prazer que o Homem retira da mimésis, um prazer que resulta da identificação, o que requer um conhecimento, uma mathesis (do conhecimento). É com o choque entre a representação espontânea, verdadeira e sem medo da criança e a vontade de ser reconhecida que surgem os primeiros bloqueios, quando a criança começa a achar que “não tem jeito”.
Ao longo dos tempos tem-se procurado entender como é que a criança processa a informação que vai recebendo e a integra, construindo uma personalidade única a partir dessa experiência interior. 2 Almada Negreiros sondou esse mistério no belíssimo poema Desenhar uma flor:
“Pede-se a uma criança: Desenha uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!” 3
Estas palavras de Almada colocam o enfoque na questão do vivido, na concentração e no tempo necessários à apropriação do visto e do sentido e na dificuldade em fixar pelo desenho essa experiência. Mas, na verdade, isso é o que interessa, a experiência que levou a pensar e a sentir a flor, abrindo a criança ao mundo sem medo de ser incompreendida. Ver não é simplesmente uma acção resultante do funcionamento e da fisiologia do olho, a imagem retiniana não é mais do que uma pequena parcela do fenómeno visual, ligado com os centros de projecção do cérebro, a memória e a formação de conceitos. Como defendeu Arnheim, ver liga-se com a necessidade de conhecer; talvez por isso, para os anglo-saxónicos, ver e compreender coincidem no vocábulo que usam para as duas noções. A seu modo, desenhar corresponde a uma investigação das formas e das estruturas das coisas, para lá das aparências, para lá das superfícies; implica tanto o visível como o invisível. É como se escavássemos um território à procura de uma identidade e de uma lógica intrínseca que fundamente o desenho e, nessa medida, é um agir que implica a intuição e a racionalização.
O gesto que mobiliza a criança para as primeiras experiências gráficas é constitutivo do acto de desenhar e permanece como essencial à análise de qualquer desenho, é ele que contém o tempo da acção, que o suspende ou o dilata, é a ele que se referem as marcas do material riscador a percorrer a superfície, assinalando e tornando legível a intensidade, as dúvidas e a duração do registo. Este aspecto é uma das singularidades do desenho, uma forma de sedimentar a memória, mas também um testemunho tangível da experiência vivida, cada desenho constrói-se com sinais que contêm o tempo da sua elaboração. Neste particular, o desenho distancia-se da fotografia e da sua imbatível vocação para lidar com o real e dele extrair, em fracções de segundo, uma prova do que aconteceu. Nessa medida, a fotografia pára o tempo e o desenho compreende o tempo. A propósito do prazer do gesto no desenho Jean-Luc Nancy refere-se à forma que se gera pelo gesto nos seguintes termos: “… a verdade e o sentido da forma que se forma, no acto, o poder e a tensão do seu formar-se (informar-se) podemos dizer, no duplo sentido de se descobrir, de se compreender, de se colocar em forma, de se ligar a ‘si’ que ao mesmo tempo a forma descobre e deixa adivinhar”. 4 Esta observação incide na questão do gesto como elemento gerador e revelador de forma. O desenho implica o tempo, tempo para que a revelação aconteça. Esta constatação, numa época de todas as acelerações, pode parecer desfasada, no entanto, nessa característica, reside muita da sua força e pertinência na actualidade: como disciplina que se liga com a materialidade do mundo, reflectindo, num sistema sempre aberto, sobre a complexidade do que nos rodeia, com tempo.
Mas um outro aspecto nas palavras de Nancy merece a nossa reflexão: tem a ver com a tensão intrínseca ao desenho, ao esforço que é solicitado para uma melhor compreensão do que se desenha. Essa tensão, a par do tempo, alicerça o desenho. São ambas qualidades necessárias para que um desenho funcione.
O que leva a criança a desenhar está para lá de qualquer ensinamento, é uma força da mesma ordem que a leva a correr, saltar, ou a cantar: uma energia vital. A criança do poema de Almada intuiu que a flor que desenhava era um pretexto para se conhecer e se revelar aos outros, para projectar no desenho, não a flor, mas os “laços sentimentais”, para usar uma expressão de Matisse, que a uniam àquela flor. Nestes termos compreende-se, como afirma John Berger, que “um desenho de uma árvore mostra, não uma árvore, mas uma árvore a ser vista.” 5
Muitos dos equívocos que ocorrem em termos de senso comum entre a natureza do desenho enquanto força vital, digamos assim, e o desenho como arte, resultam do facto de colocar no mesmo plano de análise coisas que são diferentes. A arte é cultura, é um domínio de profunda investigação que requer saber e conhecimento e resulta de uma aprendizagem. A arte é uma construção cultural complexa. Quando um artista como Cy Twombly usa a garatuja, fá-lo de modo consciente e intencional, integrando no seu gesto toda a espontaneidade, mas também todo o domínio da história do desenho e da arte em geral, que lhe permitem assumir aquele gesto matricial como obra. Estudar é uma forma de ordenar conhecimentos, de tratar e antecipar problemas que uma determinada actividade coloca. No caso do desenho, como acontece com a música, a dança, ou qualquer outra forma de expressão artística, o estudante é convidado a abordar através de exercícios as grandes questões que essa disciplina engloba: o gesto, a forma, a luz, a textura, a composição, etc. É do treino e da prática orientada, através de um processo sem fim de correcções e crítica que se logra dominar os princípios que podem conduzir, ou não, à construção de obras que podemos incluir no campo da arte. Essa atitude crítica é necessária em todo o percurso do artista, é, como sabemos, um imperativo que nunca se extingue e que toda a aprendizagem deve colocar como questão fundamental.
Willem de Kooning, com cerca de dezoito anos, desenhava a natureza-morta que apresentamos, denotando um domínio invulgar no tratamento das superfícies, na definição do claro-escuro e na organização compositiva do conjunto, este é um desenho que corresponde a uma fase de aprendizagem e de treino académico e demonstra bem toda a tradição, saber e disciplina que essa preparação pressupunha, e que está na base de toda a grande escola da arte Holandesa, terra natal de de Kooning. No entanto, anos mais tarde, no inicio dos anos cinquenta, conjuntamente com Pollock, em Nova Iorque, de Kooning haveria de liderar o movimento expressionista abstracto, revendo a tradição expressionista europeia, nomeadamente alemã, para projectar possibilidades novas na pintura e no desenho.
A mesma diversidade entre desenhos de estudo e desenhos autónomos é relacionada com variadíssimos autores, sendo Picasso, provavelmente, o mais referenciado. O que podemos verificar nestes exemplos é que o domínio dos elementos da linguagem plástica do desenho é transposto para proposições com soluções finais muito distintas. Há como que uma acumulação de saberes e experiências que estruturam um pensamento plástico que se deseja cada vez mais pessoal e original. Esta transposição é fundamental, é importante que o estudante de arte não cristalize nos conhecimentos adquiridos e não se limite a reproduzir esquemas gastos. O domínio das regras de uma determinada linguagem não assegura só por si a possibilidade de produzir objectos significantes do ponto de vista artístico, digamos que é uma condição necessária mas não suficiente. Há todo um universo de vivências que contam e são mesmo decisivas na definição dos percursos. Aconselha a prudência que no campo da arte, como noutras esferas do humano, não generalizemos de forma dogmática as possibilidades de acesso ao conhecimento, restringindo-o às escolas de arte. Como sabemos, grandes nomes da arte moderna nem sequer passaram pelas escolas, contestaram-nas ou contrariaram o que aí era defendido. A aprendizagem dos artistas acontece nas mais diversas frentes, isoladamente, em pequenos grupos, mas também, como não pode deixar de ser, em comunidades académicas onde, à partida, a aquisição e a troca de experiências e saberes se dá de um modo mais organizado e natural.
No trajecto artístico da maioria dos artistas plásticos, o desenho preenche o papel de reinvenção e de instrumento de mudança do trabalho produzido, adquirindo um cariz experimental e exploratório. Pela proximidade do gesto e do pensamento, o desenho traduz de forma simples, mas eficaz, as intenções e intuições do artista.
Tradicionalmente, nas escolas de arte, mas também na formação anterior, o desenho cumpre a função de ensinar os alunos a ver. Esta concepção radica no entendimento da disciplina como sendo capaz de contribuir para a formação de uma gramática base, comum às várias artes visuais, assegurando a estrutura necessária ao pensamento visual. Como referimos, este entendimento foi sendo questionado desde os inícios do século XX. Além disso, o desenvolvimento de dispositivos de captação e projecção de imagens, como lentes, ecrãs, fotografias, cinema e vídeo obrigaram a repensar o lugar do desenho, não o pondo em causa como matéria formadora e artística de pleno direito, mas expandindo as possibilidades interpretativas do real.
No contexto actual, o pluralismo de expressões parece ser a nota dominante na formação artística, coexistindo matérias de natureza mais tecnológica com outras mais tradicionais. Para o desenho não se tornar um exercício nostálgico tem que ser fiel à sua proverbial capacidade de transformação e invenção criativa. Num tempo de todas as liberdades, de todas as experimentações, de todas as possibilidades tecnológicas, o desenho merece uma enorme atenção por parte da comunidade artística, um pouco por todo o lado. Ora, este renovado interesse, apesar da diversidade de meios, parece traduzir a necessidade de retorno ao essencial.
Aprender a desenhar não é muito diferente do que acontece na aquisição dos outros conhecimentos, parecendo paradoxal, acontece como refere o mestre chinês da artista francesa Fabienne Verdier: “É preciso aprender, depois esquecer o que se aprendeu, reencontrar o natural até conseguir criar sem esforço.”6. A ironia latente na aprendizagem do desenho corresponde muito bem à célebre formulação de Picasso, “Aos doze anos sabia desenhar como Rafael, mas necessitei de toda a vida para aprender a pintar como uma criança”, colocando no despojamento e simplicidade do gesto inaugural da criança que tenta desenhar uma flor, o objectivo a alcançar depois da aprendizagem de uma vida.
Azeitão, Janeiro de 2011
Bibliografia
AAVV, Issues in Art and Education - Aspects of the Fine Art Curriculum, Londres, Tate Publishing / Wimbledon School of Art, 1996.
ARNHEIM, Rudolf, Consideraciones sobre la educación artistica, Barcelona, Ediciones Paidós, 1993
BERGER, John, Berger on Drawing, Aghabullogue, Occasional Press, 2008 (1ªed. 2005)
KAUPELIS, Robert, Experimental Drawing, Nova Iorque, Watson-Guptill publications, 1992.
MATISSE, Escritos e reflexões sobre arte, Lisboa, Ulisseia, s.d.
NANCY, Jean-Luc, Le Plaisir au dessin, Paris, Galilée, 2009.
SALAVISA, Eduardo, GASPAR DE MATOS, Margarida, Linguagem visual, Lisboa, Luso Livro, 1993.
VERDIER, Fabienne, Passagère du silence, Ed. Albin Michel, 2003
VYGOTSKY, Lev, A imaginação e a arte na infância, Lisboa, Relógio d’Água, 2009.
Outras fontes
belostextos.aaldeia.net
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Desenhar, saber desenhar
Ciclo de conferências
FBAUL, 2011
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